Bradley J. Birzer é cofundador do The Imaginative Conservative e Professor da Cadeira de História “Russel Amos Kirk” na Faculdade Hillsdale. Ele é um “fellow” da Livraria Presidencial Ronald Reagan. Dr. Birzer é autor de Russel Kirk: American Conservative (2015, University Press of Kentucky), American Cicero: The Life of Charles Carroll, Sanctifying the World: the Augustinian Life and Mind of Christopher Dawson, J.R.R. Tolkien’s Sanctifying Myth: Understanding Middle-earth, coeditor de The American Democrat and Other Political Writings por James Fenimore Cooper, e coautor de The American West.
Este ensaio foi traduzido e republicado com a graciosa permissão de The Imaginative Conservative (2015).
Traduzido por: Sérgio Ramos*.
Publicado em: 12/01/2016.
Mesmo J. R. R. Tolkien, curiosamente, não conseguia identificar exatamente quando a mitologia começou. Pode-se, certamente, precisar uma data para a mitologia em sua forma mais crua e menos reconhecível algum tempo antes de sua participação na Grande Guerra, quando o jovem escreveu seu poema “The Voyage of Eärendil, the Evening Star” [1] (“A Viagem de Eärendil, a Estrela Verpertina”). Em uma carta escrita ao professor da Faculdade Wheaton e um dos primeiros acadêmicos dos Inklings, Clyde Kilby, Tolkien acrescentou ao final como uma nota de rodapé: “Espero que isto possa chegar a você no ou antes do Natal. Lux fulgebat super nos*. Eala Eärendil engla beorhtast ofer middangeard monnum sended (Palavras arrebatadoras a partir das quais, em última análise, saiu toda a minha mitologia).” [2]
Os versos vêm do poema épico medieval Crist, de Cynewulf. Em uma carta datada de dois anos após a que foi endereçada a Kilby, Tolkien novamente explicou a importância do nome Eärendil para sua mitologia, notando que teve contato com ele inicialmente em 1913 enquanto estudava anglo-saxão e brincava – como ele constantemente fazia – com as possíveis origens e derivações de uma palavra. [3]
Em seu próprio trabalho acadêmico, Carl Hostetter cavou fundo nas fontes filológicas e significados de Eärendil melhor do que qualquer outra pessoa, encontrando as fontes reais que Tolkien teria utilizado – especialmente o trabalho de Jacob Grimm e Israel Gollancz – para entender sua própria leitura de Crist de Cynewulf, a fonte para os versos inspiradores. Hostetter, convincentemente, revela que o Eärendil de Tolkien, tomado de Cynewulf, tinha cinco distintos, porém entrelaçados, aspectos que informaram a própria mitologia de Tolkien desde seu início. Estes aspectos são Eärendil como um astro (em particular, Vênus); como um mensageiro ou anjo; como uma águia; como um marinheiro; e como um arauto de Cristo. Tomando estas cinco coisas como uma só, “Tolkien sintetizou um poderoso mito para sua Terra-média”, Hostetter explica com propriedade. “De fato, poder-se-ia dizer que muito da mitologia de Tolkien floresce de sua fonte filológica.” [4]
Na época em que Christopher Tolkien publicou O Silmarillion em 1977, Eärendil permaneceu sendo um ser misticamente poderoso, o marido de Elwing, pai de Elrond e Elros, e um aliado poderoso de Círdan, o Armador. Sobrecarregado com inquietação, Eärendil sempre buscou descobertas e viagens. Ele e Círdan projetaram e construíram Vingilot, talvez o maior navio de seu tipo, e Eärendil muito explorou, sempre dilacerado por seu amor pela aventura e seu desejo em residir com Elwing. Depois que Elwing vem em posse de uma Silmaril, seus protetores juramentados, os filhos de Fëanor, atacam, dizimando o povo de Eärendil. Para protege-la e a Silmaril, o grande deus aquático Ulmo a transforma em um pássaro branco e a faz voar através das águas em busca de Eärendil. Ao pousar em Vingilot, ela retornou à forma élfica e Eärendil pôs a Silmaril em sua testa. Eles navegaram para o Oeste proibido. Ao chegarem, Eärendil deixou Elwing, esperando que a maldição que determinava a morte para todos os mortais que tocassem o Reino Abençoado a ignorasse. Enquanto Eärendil se aventurava na terra dos deuses, seu vazio causou grande medo nele. O que teria acontecido aos imortais? Celebrando como um só povo em um grande festival, os deuses enviam Eönwë como um arauto para Eärendil.
Salve, Eärendil, dos marinheiros o mais famoso, o esperado que chega sem ser percebido, o desejado que chega depois da última esperança! Salve, Eärendil, portador da luz anterior ao Sol e à Lua! Esplendor dos Filhos da Terra, estrela nas trevas, joia no pôr-do-sol, radiante na manhã!
Convocado para explicar suas ações e seu propósito, os deuses o perdoam, e Mandos recompensou sua linhagem concedendo-lhe a escolha do destino: ao de Elfo, atado ao mundo, ou ao de homem, mortal e efêmero. Ulmo afirmou o lugar de Eärendil mais claramente: “Para isso foi ele trazido ao mundo.” [6] Tanto ele quanto Elwing escolheram ser considerados e ter o mesmo destino dos nascidos como Elfos, embora Eärendil tenha escolhido com relutância. Conduzindo Vingilot e carregando a Silmaril em sua testa, Eärendil navegou além dos muros do mundo, se tornando Vênus, mais claro no fim de tarde e na manhã. Para o bem da Terra-média, Eärendil se tornou um farol de esperança – auxílio dos deuses – mas ele se tornou um terror para Morgoth. Na última “Grande Batalha” da Terra-média, portanto finalizando a Primeira Era, Eärendil voou com Vingilot e liderou vitoriosamente as águias e hordas de pássaros contra os dragões e cruéis bestas aladas de Morgoth. [7]
A maior exploração de Eärendil na mitologia inicialmente criada – talvez a parte mais primitiva da mitologia – aparece no Book of Lost Tales Part II, de Tolkien. Como Christopher explica, seu pai havia escrito o primeiro poema sobre Eärendil em setembro de 1914 enquanto estava em Phoenix Farm, em Gedling, Nottinghamshire. [8] Na primeira versão do poema, Eärendil voa tanto e tão longe que ele queima, como se “sua luz envelhecesse em frios abismos.” [9] Apenas meses depois, Tolkien escreveu um segundo poema, “The Bidding of the Mistrel”, no qual as canções das antigas escrituras são entoadas com fé, mas sem compreensão ou verdadeira alma. “A música está quebrada, as palavras semiesquecidas.” [10] Na tarde de 27 de novembro de 1914, Tolkien leu uma parte de Eärendil, “The Shores of Faery”, que ecoa os elementos poéticos de São Francisco de Assis. “Leste da lua, oeste do Sol”, começa o poema, nos levando além da montanha dos deuses, Taniquetil, e através do Reino Abençoado, Valinor. [12]
Por quanto tempo Tolkien trabalhou nesta parte do poema não está claro, mas ele completou uma esplêndida aquarela com o mesmo título em 10 de maio de 1915. [13] Em julho, ele também escreveu o poema final da história de Eärendil, “The Happy Mariners”, um chamado para a mente viajar e a alma buscar além dos sentidos e lógica do mundo, “trechos de cânticos de uma música mística” e um vislumbre fatídico de Eärendil e como ele voa para o Oeste e além. [14] Se isso é Eärendil ressuscitado ou apenas o poeta da imaginação vendo Eärendil antes dele queimar permanece obscuro na poesia. Claramente, no entanto, o poeta da imaginação existe no tempo e na terra enquanto ele testemunha o transcendental.
É claro, isto leva de volta à questão vital: este é o início da mitologia maior, da qual O Hobbit e O Senhor dos Anéis nasceu?
Tolkien nunca escreveu o conto completo como um registro em prosa nos anos iniciais de sua mitologia. Ao invés disso, seus quatro poemas serviram como o guia mais forte para a transmissão da história de Eärendil. Suas anotações dos manuscritos mais antigos, como Christopher explicou tão bem, revelaram alguns elementos estranhos na mitologia de Eärendil. Por exemplo, Eärendil viajou para a Islândia e a Groelândia e ele encontrou o “Muro de Coisas no Oeste”. [15] Apesar do caótico estado das ideias em 1914 e 1915, Christopher nos lembra que “o mito estava presente em certas imagens que deveriam permanecer, mas estas coisas não tinham sido articuladas.” [16]
Notas:
*Que uma luz brilhe sobre nós neste dia.
[1] As Cartas de J. R. R. Tolkien, 385, 434; HoMe: 267 – com a reimpressão do poema e comentário de CJT. Kilby fala sobre a importância disso em sua memória, pg. 57 em diante. Carpenter (p. 71) também fala que é o começo da mitologia. Scull e Hammond estão menos convencidos. Veja JRRT Guide: RG, 234) Veja também Hostetter, “Over Middle-earth”, Mythlore)
[2] JRRT, Oxford, para Clyde Kilby, Wheaton III, 18 de dezembro de 1965, em WCWC. Kilby apresentou uma versão ligeiramente editada da carta na página 57 de suas memórias sobre Tolkien, Tolkien and the Silmarillion (1976).
[3] As Cartad de J. R. R. Tolkien, 385.
[4] Carl F. Hostetter, “Over Middle-earth Sent Unto Men: On the Philological Origins of Tolkien´s Earendel Myth”, Mythlore (Primavera, 1991): 5-10. Veja também: Carl F. Hostetter e Arden R. Smith, “A Mythology for England”, em Proceedings of the J. R. R. Tolkien Centenary Conference, ed. por Patricia Reynolds e Glen H. GoodKnight (Altadena, CA: Mythopoeic Press, 1995), 281-290; e Christopher Gilson, carta ao editor, Vinyar Tengwar 4 (novembro, 1993): 18-24. Gilson sugere que Eärendil tem mais associações linguísticas do que inglês antigo e Crist. Em particular, ele nota as semelhanças a Aurvandill, um gigante em nórdico antigo, uma das várias conexões às línguas germânicas e os mitos como mencionado em “The Notion Club Papers”, de Tolkien.
[5] Tolkien, O Silmarillion, 248-249.
[6] Tolkien, O Silmarillio, 249.
[7] Em suas notas ao The Book of Lost Tales, Part II, de Tolkien, Christopher anota que o próprio nome Eärendil estava relacionado – em élfico – a águia.
[8] Tolkien, Book of Lost Tales, Part II, 267.
[9] Tolkien, Book of Lost Tales, Part II, 260.
[10] Tolkien, Book of Lost Tales, Part II, 270.
[11] As Cartas de J. R. R. Tolkien, 7-8.
[12] Tolkien, Book of Lost Tales, Part II, 271-272.
[13] Hammond e Scull, J.R.R. Tolkien: Artist and Illustrator, 47-48.
[14] Tolkien, Book of Lost Tales, Part II, 274-276.
[15] Tolkien, Book of Lost Tales, Part II, pp. 259-261. Em “The Wall of Things in the West,” veja também Tolkien, Book of Lost Tales, Part I, pp. 215-216.
[16] Tolkien, Book of Lost Tales, Part II, 265.
Artigo originalmente publicado AQUI em 15 de dezembro de 2015.
Tradução por:

*Sérgio Ramos é membro da Tolkien Society e administrador do Tolkien Brasil. Servidor público, artista marcial e entusiasta de histórias de heróis.
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