by Eduardo Stark
Ao ler as obras de J.R.R. Tolkien e estudar com mais profundidade seu universo imaginário, muitos se perguntam como uma pessoa conseguiu escrever algo tão interessante, tão criativo e tão bem conduzido a ponto de parecer não ser escrito por uma única pessoa.
Embora Tolkien fosse questionado em várias oportunidades sobre como foi o seu processo de escrita e como ele criou o seu mundo, muitas vezes nem ele mesmo sabia responder com certeza de onde surgiam as histórias.
Ao escrever pela primeira vez, por exemplo, a celebre frase “Numa Toca no chão vivia um hobbit”, o autor mal sabia o que seria um hobbit e o que viria a seguir nas histórias. E isso se repetiu em vários momentos em que os livros iam sendo feitos com se fosse algo sobrenatural e fora do controle.
Muitos estudiosos analisam o pensamento humano, o comportamento e apresentam suas teses sobre a criatividade de um escritor. A riqueza de detalhes e o cuidado com a escrita e uma imaginação incrível tem suas explicações dentro da psicanálise, desenvolvida por Sigmund Freud.
As obras de J.R.R. Tolkien podem ser analisadas sob a ótica de diversas disciplinas do conhecimento humano, mas a psicanálise parece nos fornecer algo mais profundo na vã tentativa de entrar na mente de um grande escritor e enxergar o seu mundo.
Diversos artigos e teses acadêmicas analisam o escritor de O Senhor dos Anéis com uma visão mais apurada do que a realizada nesse texto. Dessa forma, serão apresentados a seguir alguns pontos interessantes entre a obra de Freud e sua relação com o escritor Tolkien, possibilitando futuras pesquisas e teses com mais propriedade aos acadêmicos e estudiosos dessa área.
Importante frisar a ideia de Tolkien quanto a criticas literárias que tomam como base a vida do autor. Segundo ele a “a investigação da biografia de um autor (ou outros vislumbres semelhantes de sua “personalidade”, tal como podem ser colhidos pelos curiosos) é uma abordagem inteiramente vã e falsa de suas obras”. Desse modo, Tolkien apresenta uma ideia contrária aos estudos que buscam na vida do autor algum fundamento para suas obras. Essa ideia se assemelha a oposição que ele faz em relação a alegorias. Ou seja, dizer que algo foi colocado na história interna do mundo imaginário como se fosse uma representação de algo do mundo real.
A ideia de Tolkien era que os leitores apenas vissem a sua obra como bastante em si. Tal como acontece com as mitologias mais antigas, em que não se sabe o nome do autor e isso não tem uma relevância maior para compreender os mitos. Apesar disso, é quase inevitável buscar análises profundas sobre como o escritor tinha o seu processo criativo sem fazer uso das informações fornecidas pela psicanálise. E Joseph Campbell parece ter essa mesma ideia em relação a mitologia quando menciona em seu livro O Herói de Mil Faces, que “não conheço um instrumento moderno que supere a psicanálise” para entender a linguagem simbólica dos mitos.
Freud e Os Inklings
Sigismund Schlomo Freud (1856-1939), chamado de Sigmund Freud, foi um médico neurologista que fundou o ramo de estudos chamado psicanálise. Suas ideias foram bem divulgadas entre os intelectuais de sua época por novas descobertas sobre a mente humana, em especial a ideia da existência de um inconsciente.
Tolkien e Freud viveram na mesma época e é bem provável que o autor de O Hobbit teve contato com alguns textos psicanalista. Isso é explicado pelas diversas conversas que o Tolkien tinha com seus amigos os Inklings, em especial o seu maior amigo C.S. Lewis, o autor de Crônicas de Nárnia.
As obras de Freud repercutiam não apenas em seu campo de estudos, mas atingia vários intelectuais de sua época. O clima universitário de Oxford implicava que os professores ficassem situados nas novas ideias de seu tempo. Com isso, havia diversos debates em rodas de amigos em pubs de Oxford e o tema Freud foi abordado em algumas ocasiões.
Assim como Tolkien, C.S. Lewis divergia em vários aspectos das ideias freudianas. Até mesmo como uma reação a abordagens ateístas do psicanalista. Foi com base nessas divergências entre Freud e Lewis que Armand M. Nicholi, psiquiatra e professor de medicina de Harvard, escreveu o livro Deus em Questão: C.S. Lewis e Freud Debatem Deus, Amor, Sexo e o Sentido da Vida, publicado no Brasil pela editora Ultimato.

Livro Deus em questão
Existe também uma série de documentários de quatro partes produzida pela PBS com o mesmo título do livro “Deus em Questão” e com a apresentação do mesmo autor Armand M. Nicholi. Nessa série é apresentada a vida e as ideias de C.S. Lewis e Freud. Há uma parte em que J.R.R. Tolkien aparece e convence Lewis sobre o cristianismo.
O livro de Nicholi trata de temas fundamentais do ser humano e analisa em paralelo a vida desses grandes nomes do século XX. O livro coloca as opiniões de cada um dos intelectuais e aponta as suas divergências citando as fontes de suas afirmações. O livro se torna interessante pelo fato de que C.S. Lewis foi um ateu durante boa parte de sua vida e, graças aos argumentos e auxilio de Tolkien, se converteu ao cristianismo. Enquanto Freud foi considerado o expoente do ateísmo de sua época. Dessa forma o livro se torna um diálogo de duas mentes brilhantes sobre temas fundamentais do ser humano.
No livro ‘O Futuro de uma Ilusão’ de Freud, pregava a ideia de que as religiões eram consideradas neuroses (pequenos desvios mentais). Isso era do conhecimento de C.S. Lewis que apresentou suas convicções nesse aspecto em algumas de suas cartas e em artigos.
Como será a seguir tratado, C.S. Lewis não apenas conversava com seus amigos sobre Freud ou fazia algum comentário em cartas. Ele também escreveu artigos abordando temas freudianos, e em especial o “Psycho-Analysis and Literary Criticism” no livro Selected Literary Essays, pela Cambridge University Press.
Com base nessas divergências de ideias entre Lewis e Freud é que foi criado uma peça teatral “Freud, A Última Sessão” que atingindo grande sucesso nos E.U.A e Europa também chegou ao Brasil e foi apresentado em várias cidades em 2012 com Leonardo Netto no papel de C.S. Lewis e Hélio Ribeiro, como Freud. Em 2014 o papel de Lewis passou a ser de Anderson Müller enquanto Hélio se manteve como Freud. A direção da peça foi feita por Ticiana Studart, e é baseada no livro “Deus em Questão” mencionado acima.
Mesmo com essas divergências de pensamento e aparente conflito intelectual, parece que não há relação no âmbito pessoal. E é interessante como o destino interligam as pessoas. Sir Clement Raphael Freud, radialista, escritor e político era neto do Sigmund Freud e se casou com June Beatrice Flewett (conhecida como Jill Freud), uma atriz inglesa e diretora de teatro que durante a época da Segunda Guerra Mundial se refugiou em Oxford na casa de C.S. Lewis. Ela foi a inspiração para a personagem Lucy nas Crônicas de Nárnia.
Jill Freud era uma menina de um convento católico e por isso havia uma aproximação em relação a Tolkien, que era um devoto católico. Era costume que a menina fosse tomar chá na casa do autor do Hobbit e se lembrava que Lewis saia toda terça para encontrar seus amigos os Inklings.
O casamento do neto de Freud e a protegida de Lewis ocorreu em 1960, a tempo de o autor de Nárnia saber que ela se casou com um descendente de um “rival” de ideias.

Clement Freud (neto de Sigmund Freud) e Jil Freud (a protegida de Lewis que inspirou a personagem Lucy)
Fantasia e escritores na visão de Freud, Tolkien e Lewis
A palavra “Fantasia” é conceituada de forma diferente para a literatura e a psicologia. Freud foi um marco na conceituação psicológica do que é fantasia, enquanto que Tolkien realizou o mesmo no campo da literatura.
Cronologicamente a conceituação de Freud veio primeiro com os seus ensaios e conferências no início do século XX. Em especial o chamado “Escritores criativos e devaneio (1908 /1907), em que o psicanalista analisa o processo criativo de um escritor e como ele se desenvolve desde a infância.
Para entender a ideia de Freud sobre a fantasia é preciso entender o conceito de devaneio. O devaneio é como se fosse um espaço de tempo em que uma pessoa passa a ter a sua realidade parcialmente substituída por uma visão de fantasia (uma imaginação) em relação a suas felicidades, prazeres, esperanças e ambições criando uma expectativa ou desejando que se passe. O devaneio é possível tanto para pessoas que não apresentam nenhum distúrbio psíquico quando para quem tem.
Dentro dessa ideia Freud conceitua da seguinte forma “Os devaneios são fantasias (produtos da imaginação): são fenômenos muito generalizados, observáveis mais uma vez tanto nas pessoas sadias como nas doentes, e são facilmente acessíveis ao estudo em nossa própria mente”. (Freud, Sigmund, Conferências introdutórias sobre psicanálise, Conferência V).
Segundo Freud os devaneios surgem pouco antes do período da puberdade, no final da infância e continuam a ocorrer até a maturidade ser alcançada, sendo abandonadas ou mantidas ate o fim da vida. Eles se modificam e são flexíveis ao longo do tempo de vida da pessoa, podendo ter muitas variações.
É dos devaneios que surgem as fontes de criação dos escritores e artistas. Como Freud afirma:“São a matéria-prima da produção poética, pois o escritor criativo usa seus devaneios com determinadas remodelações, disfarces e omissões, para construir as situações que introduz em seus contos, novelas ou peças. O herói dos devaneios é sempre a própria pessoa, seja diretamente, seja por uma óbvia identificação com alguma outra pessoa”. (Freud, Sigmund, Conferências introdutórias sobre psicanálise, Conferência V).
Dentro da ideia de devaneio é que vemos a fantasia, em que as necessidades do individuo são satisfeitas, ou seja: “São cenas e eventos em que as necessidades egoísticas de ambição e poder da pessoa, ou seus desejos eróticos, encontram satisfação.” Dessa forma, a fantasia seria uma espécie de mecanismo de defesa do individuo em relação aos seus desejos que não foram realizados e por isso seriam fantasiados como forma de compensação ou satisfação.
Antes de deixá-los ir, gostaria, contudo, de chamar-lhes um pouco mais a atenção para um aspecto da vida de fantasia que merece o mais amplo interesse. Isto porque existe um caminho que conduz da fantasia de volta à realidade – isto é, o caminho da arte. Um artista é, certamente, em princípio um introvertido, uma pessoa não muito distante da neurose. É uma pessoa oprimida por necessidades instintuais demasiado intensas. Deseja conquistar honras, poder, riqueza, fama e o amor das mulheres; mas faltam-lhe os meios de conquistar essas satisfações. Consequentemente, assim como qualquer outro homem insatisfeito, afasta-se da realidade e transfere todo o seu interesse, e também toda a sua libido, para as construções, plenas de desejos, de sua vida de fantasia, de onde o caminho pode levar à neurose. Sem dúvida, deve haver uma convergência de todos os tipos de coisas, para que tal não se torne o resultado completo de sua evolução; na verdade, sabe-se muito bem com quanta frequência os artistas, em especial, sofrem de uma inibição parcial de sua eficiência devido à neurose. Sua constituição provavelmente conta com uma intensa capacidade de sublimação e com determinado grau de frouxidão nas repressões, o que é decisivo para um conflito. Um artista encontra, porém, o caminho de retorno à realidade da maneira expressa a seguir. A dizer a verdade, ele não é o único que leva uma vida de fantasia. O acesso à região equidistante da fantasia e da realidade é permitido pelo consentimento universal da humanidade, e todo aquele que sofre privação espera obter dela alívio e consolo. Entretanto, para aqueles que não são artistas, é muito limitada a produção de prazer que se deriva das fontes da fantasia. A crueldade de suas repressões força-os a se contentarem com esses estéreis devaneios aos quais é permitido o acesso à consciência. Um homem que é um verdadeiro artista, tem mais coisa à sua disposição. Em primeiro lugar, sabe como dar forma a seus devaneios de modo tal que estes perdem aquilo que neles é excessivamente pessoal e que afasta as demais pessoas, possibilitando que os outros compartilhem do prazer obtido nesses devaneios. Também sabe como abrandá-los de modo que não traiam sua origem em fontes proscritas. Ademais, possui o misterioso poder de moldar determinado material até que se torne imagem fiel de sua fantasia; e sabe, principalmente, pôr em conexão uma tão vasta produção de prazer com essa representação de sua fantasia inconsciente, que, pelo menos no momento considerado, as repressões são sobrepujadas e suspensas. Se o artista é capaz de realizar tudo isso, possibilita a outras pessoas, novamente, obter consolo e alívio a partir de suas próprias fontes de prazer em seu inconsciente, que para elas se tornaram inacessíveis; granjeia a gratidão e a admiração delas, e, dessa forma, através de sua fantasia conseguiu o que originalmente alcançara apenas em sua fantasia – honras, poder e o amor das mulheres. (Freud, Sigmund.Conferências introdutórias sobre psicanálise, Conferência XXIII, p.314)
Nesse trecho destacado Freud apresenta a ideia de que o escritor tem devaneios e os coloca em forma de histórias, ou seja, como ele se sente frustrado na vida por não conseguir atingir “honras, poder e o amor das mulheres” ele repercute esse desejo em uma forma criativa que realizasse esses anseios.
Apresetando uma ideia diferente sobre o tema, C.S.Lewis comenta o mesmo trecho destacado e em seu ensaio “Psycho-Analysis and Literary Criticism” publicado no livro Selected Literary Essays. Segundo o autor de Crônicas de Nárnia, o escritor não cria suas histórias com base apenas em ambições não concretizadas, existem outras motivações para ele. E é por isso que Lewis deixa claro que não discorda das ideias de Freud, mas que apenas pretende realizar uma adição aos argumentos do psicanalista quanto ao tema.
Para Lewis existem duas origens da criatividade do escritor. A primeira é a destacada por Freud, como sendo o produto de desejos que não foram realizados e que por isso são imaginados, como um mecanismo de defesa pela ausência de “honra, poder e amor das mulheres”. Ou seja, a atividade imaginativa está presa ao psicológico do individuo. A segunda está relaciona a liberdade imaginativa.
Por estas razões eu desejo emendar a teoria freudiana da literatura em algo como isto: Há duas atividades da imaginação, uma livre, e a outra escravizada aos desejos de seu dono, para quem tem que fornecer gratificações imaginárias. Ambos podem ser o ponto de partida para as obras de arte. A atividade precedente ou “livre” prossegue nas obras que produz e passa do estatuto de sonho para o da arte por um processo que pode legitimamente ser chamado de “elaboração”: as incoerências são arrumadas, as banalidades removidas, os valores e associações privados substituídos, Proporção, alívio e temperança são introduzidas. Mas a outra, ou tipo servil, não é “elaborado” em uma obra de arte: é uma força motriz que inicia a atividade e é retirada quando uma vez que o motor está funcionando, ou um andaime que é derrubado quando o edifício está completo. Finalmente, os produtos característicos da imaginação livre pertencem ao que pode ser chamado de literatura fantástica, mítica ou improvável: a da fantasia, da imaginação que satisfaz os desejos, àquilo que, num sentido muito solto, pode ser chamado de Tipo realista. Eu digo “produtos característicos” porque o princípio sem dúvida admite de exceções inumeráveis. (C.S. Lewis. Psycho-Analysis and Literary Criticism” in. Selected Literary Essays, p.290)
Dessa forma, C.S. Lewis acrescenta uma nova forma de ver a teoria de Freud e acrescenta a ideia de que é possível a criação sem passar por devaneios ou imaginação com finalidade de consolo psíquico. O artigo segue relacionando outros comentários de Lewis sobre a psicanálise e os pontos que ele discorda.
Nesse sentido, o Lewis estaria incluindo a personalidade de Tolkien como essa nova categoria de imaginação livre. Pois o autor de O Senhor dos Anéis não procurava em seu processo criativo “honras, poder, riqueza, fama e o amor das mulheres” como Freud mencionará.Na época em que Tolkien vivia os escritores de literatura fantástica eram de certa forma discriminados em meios acadêmicos, então não seria uma busca por fama sua pretensão. Tolkien não buscava poder, até por que suas obras são de certa forma uma crítica a ideia de controle e do poder absoluto. Nem mesmo riqueza o autor de O Senhor dos Anéis buscava, pois como ele mesmo ressaltou em entrevista ao The Telegraph em 1966 “Eu nunca esperei um sucesso financeiro. De fato, eu nunca nem mesmo pensei em uma publicação comercial quando eu escrevi O Hobbit nos anos trinta”. Da mesma forma não buscava o “amor das mulheres” pois ele era um senhor casado e com uma mulher que amava profundamente. Tolkien escrevia seus textos de forma privada como um entretenimento pessoal. Como se fosse a sua brincadeira intelectualizada. O seu tempo criativo de apenas realizar algo que fosse bom.
Em seu ensaio “Sobre Contos de Fadas”, Tolkien tenta conceituar de uma forma diferenciada a palavra “Fantasia” e apresenta as primeiras ideias de um gênero literário. É por isso que esse texto é considerado um marco nesse tipo de literatura por apresentar as primeiras ideias do uso da palavra “Fantasia” em oposição ao uso na época com um aspecto psicológico.
Na época de Tolkien ainda existia um grande preconceito em relação as atividades de fantasia, aos escritos de mundos imaginários. E havia a necessidade de alguém se impor contra essas ideias e apresentar uma nova visão relacionada ao tema. Para Tolkien a Fantasia não poderia ser considerada como um produto de um devaneio ou mesmo uma neurose como afirmava Freud:
É claro que a Fantasia começa com uma vantagem: a estranheza cativante. Mas essa vantagem tem se voltado contra ela, e contribuiu para sua difamação. Muitas pessoas não gostam de ser “cativadas”. Não gostam de nenhuma interferência com o Mundo Primário, ou com os pequenos vislumbres dele que lhes são familiares. Portanto elas confundem, tolamente e até maldosamente, a Fantasia com o Sonho, no qual não existe Arte; e com distúrbios mentais, nos quais não existe nem mesmo controle: com ilusão e alucinação. (Sobre Contos de Fadas, in Árvore e Folha, Wmf Martins Fontes)
Há uma forte oposição de Tolkien em relação a ideia de que a Fantasia pudesse destruir a razão, ou seja, que pudesse levar a algum distúrbio mental. Para ele havia a necessidade de existir a razão para que a fantasia fosse produzida da melhor forma possível:
A Fantasia é uma atividade humana natural. Certamente ela não destrói a Razão, muito menos insulta; e não abranda o apetite pela verdade científica nem obscurece a percepção dela. Ao contrário. Quanto mais arguta e clara a razão, melhor fantasia produzirá. Se os homens estivessem num estado em que não quisessem conhecer ou não pudessem perceber a verdade (fatos ou evidência), então a Fantasia definharia até que eles se curassem. Se chegarem a atingir esse estado (não parece totalmente impossível), a Fantasia perecerá e se transformará em Ilusão Mórbida. (Sobre Contos de Fadas, in Árvore e Folha, Wmf Martins Fontes)
É nesse sentido que Tolkien conclui com propriedade que:
Creio que a fantasia (neste sentido) não é uma forma inferior de Arte, e sim superior, de fato a mais próxima da forma pura, e portanto (quando alcançada) a mais potente. (Sobre Contos de Fadas, in Árvore e Folha, Wmf Martins Fontes)
As grandes divergências de pensamento entre Freud e C.S. Lewis e J.R.R. Tolkien mostram que as formas de pensar sobre o ser humano e sua capacidade de criar e de imaginar é algo a ser sempre estudado. E que não existe ainda algo completamente seguro sobre o que se passa na mente humana. Nem mesmo Freud conseguiu desvendar todos os mistérios da imaginação e os seus seguidores e outros estudiosos ainda estão distantes de saber a verdade, porém a busca continua.

Sigmund Freud
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O ensaio que se segue foi escrito por Sigmund Freud e ele é bem interessante para se conhecer mais sobre a forma de pensar do psicanalista em relação aos escritores criativos e a ideia do devaneio. Muitos pontos são interessantes de se destacar por justamente serem similares ao que a obra e vida de Tolkien nos mostra, muito embora, como visto acima eles discordassem de muitas dessas ideias.
Escritores criativos e devaneio (1908 /1907), Sigmund Freud
Nós, leigos, sempre sentimos uma intensa curiosidade – como o Cardeal que fez uma idêntica indagação a Ariosto – em saber de que fontes esse estranho ser, o escritor criativo, retira seu material, e como consegue impressionar-nos com o mesmo e despertar-nos emoções das quais talvez nem nos julgássemos capazes. Nosso interesse intensifica-se ainda mais pelo fato de que, ao ser interrogado, o escritor não nos oferece uma explicação, ou pelo menos nenhuma satisfatória; e de forma alguma ele é enfraquecido por sabermos que nem a mais clara compreensão interna (insight) dos determinantes de sua escolha de material e da natureza da arte de criação imaginativa em nada irá contribuir para nos tornar escritores criativos.
Se ao menos pudéssemos descobrir em nós mesmos ou em nossos semelhantes uma atividade afim à criação literária! Uma investigação dessa atividade nos daria a esperança de obter as primeiras explicações do trabalho criador do escritor. E, na verdade, essa perspectiva é possível. Afinal, os próprios escritores criativos gostam de diminuir a distância entre a sua classe e o homem comum, assegurando-nos com muita frequência de que todos, no íntimo, somos poetas, e de que só com o último homem morrerá o último poeta.
Será que deveríamos procurar já na infância os primeiros traços de atividade imaginativa? A ocupação favorita e mais intensa da criança é o brinquedo ou os jogos. Acaso não poderíamos dizer que ao brincar toda criança se comporta como um escritor criativo, pois cria um mundo próprio, ou melhor, reajusta os elementos de seu mundo de uma nova forma que lhe agrade? Seria errado supor que a criança não leva esse mundo a sério; ao contrário, leva muito a sério a sua brincadeira e despende na mesma muita emoção. A antítese de brincar não é o que é sério, mas o que é real. Apesar de toda a emoção com que a criança catexiza seu mundo de brinquedo, ela o distingue perfeitamente da realidade, e gosta de ligar seus objetos e situações imaginados às coisas visíveis e tangíveis do mundo real. Essa conexão é tudo o que diferencia o ‘brincar’ infantil do ‘fantasiar’.
O escritor criativo faz o mesmo que a criança que brinca. Cria um mundo de fantasia que ele leva muito a sério, isto é, no qual investe uma grande quantidade de emoção, enquanto mantém uma separação nítida entre o mesmo e a realidade. A linguagem preservou essa relação entre o brincar infantil e a criação poética. Dá [em alemão] o nome de ‘Spiel‘ [‘peça’] às formas literárias que são necessariamente ligadas a objetos tangíveis e que podem ser representadas. Fala em ‘Lustspiel‘ ou ‘Trauerspiel‘ [‘comédia’ e ‘tragédia’: literalmente, ‘brincadeira prazerosa’ e ‘brincadeira lutuosa’], chamando os que realizam a representação de ‘Schauspieler‘ [‘atores’: literalmente, ‘jogadores de espetáculo’]. A irrealidade do mundo imaginativo do escritor tem, porém, consequências importantes para a técnica de sua arte, pois muita coisa que, se fosse real, não causaria prazer, pode proporcioná-lo como jogo de fantasia, e muitos excitamentos que em si são realmente penosos, podem tornar-se uma fonte de prazer para os ouvintes e espectadores na representação da obra de um escritor.
Existe uma outra circunstância que nos leva a examinar por mais alguns instantes essa oposição entre a realidade e o brincar. Quando a criança cresce e para de brincar, após esforçar-se por algumas décadas para encarar as realidades da vida com a devida seriedade, pode colocar-se certo dia numa situação mental em que mais uma vez desaparece essa oposição entre o brincar e a realidade. Como adulto, pode refletir sobre a intensa seriedade com que realizava seus jogos na infância, equiparando suas ocupações do presente, aparentemente tão sérias, aos seus jogos de criança, pode livrar-se da pesada carga imposta pela vida e conquistar o intenso prazer proporcionado pelo humor.
Ao crescer, as pessoas param de brincar e parecem renunciar ao prazer que obtinham do brincar. Contudo, quem compreende a mente humana sabe que nada é tão difícil para o homem quanto abdicar de um prazer que já experimentou. Na realidade, nunca renunciamos a nada; apenas trocamos uma coisa por outra. O que parece ser uma renúncia é, na verdade, a formação de um substituto ou sub-rogado. Da mesma forma, a criança em crescimento, quando para de brincar, só abdica do elo com os objetos reais; em vez de brincar, ela agora fantasia. Constrói castelos no ar e cria o que chamamos de devaneios. Acredito que a maioria das pessoas construa fantasias em algum período de suas vidas. Este é um fato a que, por muito tempo, não se deu atenção, e cuja importância não foi, assim, suficientemente considerada.
As fantasias das pessoas são menos fáceis de observar do que o brincar das crianças. A criança, é verdade, brinca sozinha ou estabelece um sistema psíquico fechado com outras crianças, com vistas a um jogo, mas mesmo que não brinque em frente dos adultos, não lhes oculta seu brinquedo. O adulto, ao contrário, envergonha-se de suas fantasias, escondendo-as das outras pessoas. Acalenta suas fantasias como seu bem mais íntimo, e em geral preferiria confessar suas faltas do que confiar a outro suas fantasias. Pode acontecer, consequentemente, que acredite ser a única pessoa a inventar tais fantasias, ignorando que criações desse tipo são bem comuns nas outras pessoas. A diferença entre o comportamento da pessoa que brinca e da fantasia é explicada pelos motivos dessas duas atividades, que, entretanto, são subordinadas uma à outra.
O brincar da criança é determinado por desejos: de fato, por um único desejo – que auxilia o seu desenvolvimento -, o desejo de ser grande e adulto. A criança está sempre brincando ‘de adulto’, imitando em seus jogos aquilo que conhece da vida dos mais velhos. Ela não tem motivos para ocultar esse desejo. Já com o adulto o caso é diferente. Por um lado, sabe que dele se espera que não continue a brincar ou a fantasiar, mas que atue no mundo real; por outro lado, alguns dos desejos que provocaram suas fantasias são de tal gênero que é essencial ocultá-las. Assim, o adulto envergonha-se de suas fantasias por serem infantis e proibidas.
Mas, indagarão os senhores, se as pessoas fazem tanto mistério a respeito do seu fantasiar, como os conhecemos tão bem? É que existe uma classe de seres humanos a quem, não um deus, mas uma deusa severa – a Necessidade – delegou a tarefa de revelar aquilo de que sofrem e aquilo que lhes dá felicidade. São as vítimas de doenças nervosas, obrigadas a revelar suas fantasias, entre outras coisas, ao médico por quem esperam ser curadas através de tratamento mental. É esta a nossa melhor fonte de conhecimento, e desde então sentimo-nos justificados em supor que os nossos pacientes nada nos revelam que não possamos também ouvir de pessoas saudáveis.
Vamos agora examinar algumas características do fantasiar. Podemos partir da tese de que a pessoa feliz nunca fantasia, somente a insatisfeita. As forças motivadoras das fantasias são os desejos insatisfeitos, e toda fantasia é a realização de um desejo, uma correção da realidade insatisfatória. Os desejos motivadores variam de acordo com o sexo, o caráter e as circunstâncias da pessoa que fantasia, dividindo-se naturalmente em dois grupos principais: ou são desejos ambiciosos, que se destinam a elevar a personalidade do sujeito, ou são desejos eróticos. Nas mulheres jovens predominam, quase com exclusividade, os desejos eróticos, sendo em geral sua ambição absorvida pelas tendências eróticas. Nos homens jovens os desejos egoístas e ambiciosos ocupam o primeiro plano, de forma bem clara, ao lado dos desejos eróticos. Mas não acentuaremos a oposição entre essas duas tendências, preferindo salientar o fato de que estão frequentemente unidas. Assim como em muitos retábulos em que é visível num canto qualquer o retrato do doador, na maioria das fantasias de ambição podemos descobrir em algum canto a dama a que seu criador dedicou todos aqueles feitos heroicos e a cujos pés deposita seus triunfos. Veremos que aqui existem motivos bem fortes para ocultamento; à jovem bem educada só é permitido um mínimo de desejos eróticos, e o rapaz tem de aprender a suprimir o excesso de autoestima remanescente de sua infância mimada, para que possa encontrar seu lugar numa sociedade repleta de outros indivíduos com idênticas reivindicações.
Não devemos supor que os produtos dessa atividade imaginativa – as diversas fantasias, castelos no ar e devaneios – sejam estereotipados ou inalteráveis. Ao contrário, adaptam-se às impressões mutáveis que o sujeito tem da vida, alterando-se a cada mudança de sua situação e recebendo de cada nova impressão ativa uma espécie de ‘carimbo de data de fabricação.’ A relação entre a fantasia e o tempo é, em geral, muito importante. É como se ela flutuasse entre três tempos – os três momentos abrangidos pela nossa ideação. O trabalho mental vincula-se a uma impressão atual, a alguma ocasião motivadora no presente que foi capaz de despertar um dos desejos principais do sujeito. Dali, retrocede à lembrança de uma experiência anterior (geralmente da infância) na qual esse desejo foi realizado, criando uma situação referente ao futuro que representa a realização do desejo. O que se cria então é um devaneio ou fantasia, que encerra traços de sua origem a partir da ocasião que o provocou e a partir da lembrança. Dessa forma o passado, o presente e o futuro são entrelaçados pelo fio do desejo que os une.
Um exemplo bastante comum pode servir para tornar claro o que eu disse. Tomemos o caso de um pobre órfão que se dirige a uma firma onde talvez encontre trabalho. A caminho, permite-se um devaneio adequado à situação da qual este surge. O conteúdo de sua fantasia talvez seja, mais ou menos, o que se segue. Ele consegue o emprego, conquista as boas graças do novo patrão, torna-se indispensável, é recebido pela família do patrão, casa-se com sua encantadora filha, é promovido a diretor da firma, primeiro na posição de sócio do seu chefe, e depois como seu sucessor. Nessa fantasia, o sonhador reconquista o que possui em sua feliz infância: o lar protetor, os pais amantíssimos e os primeiros objetos do seu afeto. Esse exemplo mostra como o desejo utiliza uma ocasião do presente para construir, segundo moldes do passado, um quadro do futuro.
Há muito mais a dizer sobre as fantasias, mas limitar-me-ei a salientar aqui, de forma sucinta, mais alguns aspectos. Quando as fantasias se tornam exageradamente profusas e poderosas, estão assentes as condições para o desencadeamento da neurose ou da psicose. As fantasias também são precursoras mentais imediatas dos penosos sintomas que afligem nossos pacientes, abrindo-se aqui um amplo desvio que conduz à patologia.
Não posso ignorar a relação entre as fantasias e o sonhos. Nossos sonhos noturnos nada mais são do que fantasias dessa espécie, como podemos demonstrar pela interpretação de sonhos. A linguagem, com sua inigualável sabedoria, há muito lançou luz sobre a natureza básica dos sonhos, denominando de ‘devaneios’ as etéreas criações da fantasia. Se, apesar desse indício, geralmente permanece obscuro o significado de nossos sonhos, isto é por causa da circunstância de que à noite também surgem em nós desejos de que nos envergonhamos; têm de ser ocultos de nós mesmos, e foram consequentemente reprimidos, empurrados para o inconsciente. Tais desejos reprimidos e seus derivados só podem ser expressos de forma muito distorcida. Depois que trabalhos científicos conseguiram elucidar o fator de distorção onírica, foi fácil constatar que os sonhos noturnos são realização de desejos, da mesma forma que os devaneios – as fantasias que todos conhecemos tão bem.
Deixemos agora as fantasias e passemos ao escritor criativo. Acaso é realmente válido comparar o escritor imaginativo ao ‘sonhador em plena luz do dia’, e suas criações com os devaneios? Inicialmente devemos estabelecer uma distinção, separando os escritores que, como os antigos poetas egípcios e trágicos, utilizam temas preexistentes, daqueles que parecem criar o próprio material. Vamos examinar esses últimos, e, para os nossos fins, não escolheremos os mais aplaudidos pelos críticos, mas os menos pretensiosos autores de novelas, romances e contos, que gozam, entretanto, da estima de um amplo círculo de leitores entusiastas de ambos os sexos. Nas criações desses escritores um aspecto salienta-se de forma irrefutável: todas possuem um herói, centro do interesse, para quem o autor procura de todas as maneiras possíveis dirigir a nossa simpatia, e que parece estar sob a proteção de uma Providência especial. Se ao fim de um capítulo deixamos o herói ferido, inconsciente e esvaindo-se em sangue, com certeza o encontraremos no próximo cuidadosamente assistido e próximo da recuperação. Se o primeiro volume termina com o naufrágio do herói, no segundo logo o veremos milagrosamente salvo, sem o que a história não poderia prosseguir. O sentimento de segurança com que acompanhamos o herói através de suas perigosas aventuras é o mesmo com que o herói da vida real atira-se à água para salvar um homem que se afoga, ou se expõe à artilharia inimiga para investir contra uma bateria. Este é o genuíno sentimento heroico, expresso por um dos nossos melhores escritores numa frase inimitável. ‘Nada me pode acontecer’! Parece-me que através desse sinal revelador de invulnerabilidade, podemos reconhecer de imediato Sua Majestade o Ego, o herói de todo devaneio e de todas as histórias.
Outros traços típicos dessas histórias egocêntricas revelam idêntica afinidade. O fato de que todas as personagens femininas se apaixonam invariavelmente pelo herói não pode ser encarado como um retrato da realidade, mas será de fácil compreensão se o encararmos como um componente necessário do devaneio. O mesmo aplica-se ao fato de todos os demais personagens da história dividirem-se rigidamente em bons e maus, em flagrante oposição à verdade de caracteres humanos observáveis na vida real. Os ‘bons’ são aliados do ego que se tornou o herói da história, e os ‘maus’ são seus inimigos e rivais.
Sabemos que muitas obras imaginativas guardam boa distância do modelo do devaneio ingênuo, mas não posso deixar de suspeitar que até mesmo os exemplos mais afastados daquele modelo podem ser ligados ao mesmo através de uma sequencia ininterrupta de casos transicionais. Notei que, na maioria dos chamados ‘romances psicológicos’, só uma pessoa – o herói – é descrita anteriormente, como se o autor se colocasse em sua mente e observasse as outras personagens de fora. O romance psicológico, sem dúvida, deve sua singularidade à inclinação do escritor moderno de dividir seu ego, pela auto-observação, em muitos egos parciais, e em consequência personificar as correntes conflitantes de sua própria vida mental por vários heróis. Certos romances, que poderíamos classificar de ‘excêntricos’, parecem contrapor-se ao devaneio modelo. Nestes, a pessoa apresentada como herói desempenha um papel muito pouco ativo; vê os atos e sofrimentos das demais pessoas como espectador. Muitos dos últimos romances de Zola pertencem a essa categoria. Mas devo assinalar que a análise psicológica de indivíduos que não são escritores criativos, e que em alguns aspectos se afastam da norma, mostrou-nos variações análogas do devaneio, nos quais o ego se contenta com o papel de espectador.
Para que nossa comparação do escritor imaginativo com o homem que devaneia e da criação poética com o devaneio tenha algum valor é necessário, acima de tudo, que se revele frutuosa, de uma forma ou de outra. Tentemos, por exemplo, aplicar à obra desses autores a nossa tese anterior referente à relação entre a fantasia e os três períodos de tempo, e o desejo que o entrelaça; e com seu auxílio estudemos as conexões existentes entre a vida do escritor e suas obras. Em geral, até agora não se formou uma ideia concreta da natureza dos resultados dessa investigação, e com frequência fez-se da mesma uma concepção simplista. À luz da compreensão interna (insight) de tais fantasias, podemos encarar a situação como se segue. Uma poderosa experiência no presente desperta no escritor criativo uma lembrança de uma experiência anterior (geralmente de sua infância), da qual se origina então um desejo que encontra realização na obra criativa. A própria obra revela elementos da ocasião motivadora do presente e da lembrança antiga.
Não se alarmem ante a complexidade dessa fórmula. Na verdade suspeito que a mesma irá revelar-se como um esquema muito insuficiente. Entretanto, mesmo assim talvez ofereça uma primeira aproximação do verdadeiro estado de coisas; por experiências que realizei, inclino-me a pensar que essa visão das obras criativas pode produzir seus frutos. Não se esqueçam que a ênfase colocada nas lembranças infantis da vida do escritor – ênfase talvez desconcertante – deriva-se basicamente da suposição de que a obra literária, como o devaneio, é uma continuação, ou um substituto, do que foi o brincar infantil.
Não devemos esquecer, entretanto, de examinar aquele outro gênero de obras imaginativas, que não são uma criação original do autor, mas uma reformulação de material preexistente e conhecido. Mesmo nessas obras o escritor conserva uma certa independência que se manifesta na escolha do material e nas alterações do mesmo, às vezes muito amplas. Embora esse material não seja novo, procede do tesouro popular dos mitos, lendas e contos de fadas. Ainda está incompleto o estudo de tais construções da psicologia dos povos, mas é muito provável que os mitos, por exemplo, sejam vestígios distorcidos de fantasias plenas de desejos de nações inteiras, os sonhos seculares da humanidade jovem.
Poderão dizer que, embora eu tenha colocado o escritor criativo em primeiro lugar no título deste artigo, me ocupei menos dele que das fantasias. Reconheço o fato, e devo tentar desculpar-me alegando o estado atual de nossos conhecimentos. Pude apenas oferecer certos encorajamentos e sugestões que, partindo do estudo das fantasias, levaram ao problema da escolha do material literário pelo escritor. Quanto ao outro problema – como o escritor criativo consegue em nós os efeitos emocionais provocados por suas criações -, ainda não o tocamos. Mas gostaria, ao menos, de indicar-lhes o caminho que do nosso exame das fantasias conduz aos problemas dos efeitos poéticos.
Devem estar lembrados de que eu disse que o indivíduo que devaneia oculta cuidadosamente suas fantasias dos demais, porque sente ter razões para se envergonhar das mesmas. Devo acrescentar agora que, mesmo que ele as comunicasse para nós, o relato não nos causaria prazer. Sentiríamos repulsa, ou permaneceríamos indiferentes ao tomar conhecimento de tais fantasias. Mas quando um escritor criativo nos apresenta suas peças, ou nos relata o que julgamos ser seus próprios devaneios, sentimos um grande prazer, provavelmente originário da confluência de muitas fontes. Como o escritor o consegue constitui seu segredo mais íntimo. A verdadeira ars poetica está na técnica de superar esse nosso sentimento de repulsa, sem dúvida ligado às barreiras que separam cada ego dos demais. Podemos perceber dois dos métodos empregados por essa técnica. O escritor suaviza o caráter de seus devaneios egoístas por meio de alterações e disfarces, e nos suborna com o prazer puramente formal, isto é, estético, que nos oferece na apresentação de suas fantasias. Denominamos de prêmio de estímulo ou de prazer preliminar ao prazer desse gênero, que nos é oferecido para possibilitar a liberação de um prazer ainda maior, proveniente de fontes psíquicas mais profundas. Em minha opinião, todo prazer estético que o escritor criativo nos proporciona é da mesma natureza desse prazer preliminar, e a verdadeira satisfação que usufruímos de uma obra literária procede de uma libertação de tensões em nossas mentes. Talvez até grande parte desse efeito seja devida à possibilidade que o escritor nos oferece de, dali em diante, nos deleitarmos com nossos próprios devaneios, sem autoacusações ou vergonha. Isso nos leva ao limiar de novas e complexas investigações, mas também, pelo menos no momento, ao fim deste exame.
NOTA DO EDITOR INGLÊS
DER DICHTER UND DAS PHANTASIEREN
(a) EDIÇÕES ALEMÃS:
(1907 6 de dezembro. Pronunciado como conferência)
1908 Neue Revue, 1 (10) [março], 716-2.
1909 S.K.S.N., 2,197-206 (1912, 2ª ed.; 1921, 3ª ed.)
1924 G.S. 10, 229-239.
1924 Dichtung und Kunst, 3-14.
1941 G.W., 7, 213-223.
(b) TRADUÇÃO INGLESA:
‘The Relation of the Poet to Day-Dreaming’
1925 C.P., 4, 172-183. (Trad. de I. F. Frant Duff.)
A presente tradução, com um título alterado, é uma versão modificada da publicada em 1925. Este trabalho foi originalmente pronunciado como conferência a 6 de dezembro de 1907, diante de uma plateia de noventa pessoas, nos salões do editor e livreiro vienense Hugo Heller, que também era membro da Sociedade Psicanalítica de Viena. Um minucioso resumo da conferência apareceu, no dia seguinte, no diário vienense Die Zeit, mas a versão completa de Freud foi publicada pela primeira vez no início de 1908, num novo periódico literário de Berlim. Alguns problemas da literatura criativa haviam sido mencionados pouco antes no estudo de Freud sobre Gradiva (por exemplo, em [1]), e cerca de um ou dois anos antes ele examinara a questão em um ensaio não publicado sobre ‘Tipos Psicopáticos no Palco’ (1924a [1905]). O interesse principal deste artigo, como do que se segue, escrito na mesma época, reside no exame das fantasias.
“Gradiva” de Jensen e outros trabalhos, VOLUME IX, (1906 – 1908)
Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Ed. Standard Brasileira, vol.IX Rio de Janeiro, Imago. 1976.
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