“As palavras de Cynewulf, das quais, em última instância, brotaram toda a minha mitologia” – J.R.R. Tolkien
By Eduardo Stark
A origem do legendarium de Tolkien está intimamente associada com a própria história das ilhas britânicas. Isso porque há uma relação proposital da mitologia criada e a cultura daquela região europeia. Para entender melhor esse ponto é necessária uma revisão histórica até o momento em que o professor de Oxford iniciou seus escritos.
Antes das primeiras invasões do Império Romano existia nas ilhas setentrionais da Europa um povo conhecido como “Bretões”, daí o nome das ilhas britânicas. Essas tribos tinham uma vinculação com a cultura dos Celtas. Com o passar dos anos as ilhas foram sendo conquistadas pelo Império Romano (entre 55 a.c a 410 d.c) e assim ocorria a primeira miscigenação cultural naquelas ilhas. Com a cristianização do Império Romano em 380 d.c, os Bretões também aderiram a nova religião do Império, o que acabou por quase extinguir as antigas religiões celtas praticadas naquelas ilhas.
Com a queda do Império Romano ocidental, as ilhas britânicas ficaram sem a defesa proporcionada pelos soldados romanos e assim passou a sofrer com invasões dos bárbaros (Jutos, Saxões e Anglos). É nesse período (495-600) que ocorreu a defesa dos cristãos bretões contra os invasores bárbaros e surgiram as primeiras lendas do Rei Artur. A invasão desses povos resultou em uma nova fusão de culturas e formaram-se os chamados Anglo-Saxões, que em grande parte agora não adotavam mais o cristianismo como religião.
Papa Gregório I e a conversão cristã dos Anglo-saxões
O Gregório I, magno, antes de se tornar papa era um monge da Ordem de São Bento. Conta as histórias que ele não desejava ocupar a posição máxima da Igreja e se refugiara nas montanhas. Com o passar dos dias acabou assumindo a posição e se tornou um dos maiores Papas da história, por isso o título de ‘magno’, o Grande.
Ao andar pela cidade de Roma certa vez, acabou vendo um grupo de escravos vindos do noroeste da Europa. Ao perguntar de qual povo eles se originavam foi logo respondido “são apenas os anglos”, ao que Gregório I respondeu “Non Angli, sed angeli” (Não são anglos, são anjos”. Nesse sentido que desde então sentiu a necessidade de enviar missionários para a região daquele povo.

“Non Angli, sed angeli”
A Bretanha meridional e oriental foi posteriormente chamada de Engla-lond (“terra dos anglos”, em inglês antigo), e mais tarde England, o termo em inglês para Inglaterra.
Gregório I, Magno foi papa entre 590 a 604 e enviou as primeiras expedições de padres para as ilhas britânicas com a finalidade de converter os Anglo-saxões. Gregório I foi um importante líder religioso que trouxe estabilidade aos seus seguidores em uma época de grandes incertezas e temores em relação a novas invasões bárbaras.
Devido ao envio dos missionários, os Anglo-saxões se tornaram cristãos com o passar dos anos e novamente existia uma certa unidade religiosa nas ilhas britânicas e se formaram as relações feudais dando o inicio a idade média naquelas ilhas.
Dentro dessa ideia de esperança em meio ao caos, em um simbolismo da figura de cristo como estrela da manhã, o Gregório I desenvolveu as chamadas Antífonas do Ó.
As Antífonas do Ó são orações curtas, dirigidas a Cristo, que resumem o espírito do Advento e do Natal, representando a vinda de cristo como uma luz pela manhã. Os religiosos realizavam eventos entre os dias 17 a 23 de dezembro. As Antífonas eram cantadas de uma forma peculiar e mais bela que as músicas populares e foi assim que surgiu o chamado canto gregoriano
Entre os dias 21 e 23 de dezembro ocorre o chamado solstício de inverno no hemisfério norte, onde a noite é mais longa no ano e o dia mais curto no hemisfério norte. E é justamente no dia 21 de dezembro que se canta a antífona O Oriens, que tem relação com a passagem bíblica de Isaias 9:1: “O povo que andava nas trevas viu uma grande luz, uma luz raiou para os que habitavam uma terra sombria.”.
A passagem da antífona em latim é a seguinte:
O Oriens
splendor lucis æternæ, et sol justitiæ
Veni et illumina sedentes in tenebris
et umbra mortis
A tradução para o Português: “Ó Oriente, esplendor da luz eterna e sol da justiça Vinde e iluminai os que estão sentados, nas trevas e à sombra da morte”. O oriente tem a relação com o sol nascente, que representa a vinda de Jesus Cristo que ilumina os povos de todas as nações.
As Antífonas foram frequentemente utilizadas entre os cristãos anglo-saxões. O Papa Gregório I foi bastante reverenciado pelos ingleses e era comum utilizar os textos e canções feitas por esse papa nas festas, missas e homilias. Ele ficou conhecido como o pai do cristianismo para os ingleses, além disso, foi canonizado como santo da Igreja e tem o dia 3 de setembro como o dia de sua celebração.
Cynewulf na era das invasões Vikings
Entre os anos de 791 a 878 é o período marcado pelas invasões e saques dos Vikings nas ilhas britânicas. Havia um grande temor das invasões e muitas lendas foram criadas em torno de acontecimentos. Foi nessa época que grandes contos eram transmitidos oralmente e os padres alfabetizados registravam em manuscritos, como foi o caso do épico Beowulf.
O poeta anglo-saxão Cynewulf viveu nesse período conturbado. Pouco se sabe sobre esse escritor, mas se imagina que ele viveu entre os anos de 725 a 825. Por volta de 780 Cynewulf escreveu diversos poemas religiosos chamados “Christ” que é dividido em três parte Christ I, que trata sobre o advento de Jesus, Christ II, sobre a Ascensão e Christ II, que trata sobre o apocalipse.
Em sua segunda parte “Christ II” (também chamada ‘A Ascensão’) existe uma passagem que está relacionada com a antífona Ó Oriens, criada por Gregório I, como se verifica o trecho em anglo-saxão, versos 104 a 129:
Eala earendel, engla beorhtast,
ofer middangeard monnum sended,
ond soðfæsta sunnan leoma,
torht ofer tunglas, þu tida gehwane
of sylfum þe symle inlihtes!
Swa þu, god of gode gearo acenned,
sunu soþan fæder, swegles in wuldre
butan anginne æfre wære,
swa þec nu for þearfum þin agen geweorc
bideð þurh byldo, þæt þu þa beorhtan us
sunnan onsende, ond þe sylf cyme
þæt ðu inleohte þa þe longe ær,
þrosme beþeahte ond in þeostrum her,
sæton sinneahtes; synnum bifealdne
deorc deaþes sceadu dreogan sceoldan.Nu we hyhtfulle hælo gelyfað
þurh þæt word godes weorodum brungen,
þe on frymðe wæs fæder ælmihtigum
efenece mid god, ond nu eft gewearð
flæsc firena leas, þæt seo fæmne gebær
geomrum to geoce. God wæs mid us
gesewen butan synnum; somod eardedon
mihtig meotudes bearn ond se monnes sunu
geþwære on þeode. We þæs þonc magon
secgan sigedryhtne symle bi gewyrhtum,
þæs þe he hine sylfne us sendan wolde.
Em tradução para a lingual portuguesa:
Salve, Earendel, o mais brilhante dos anjos,
sobre a terra-média mandado aos homens,
o verdadeiro raio do sol,
deslumbrante acima de todas as estrelas!Do teu próprio eu
Tu sempre ilumina cada era.
Como tu, Deus nascido de Deus há muito tempo,
filho do verdadeiro Pai, eternamente existente,
sem começo, na glória do céu,
Assim tua própria criação clama com firmeza
agora a ti pelas necessidades, que tu enviares
aquele sol brilhante a nós, e venha a ti
para iluminar aqueles que há muito tempo vivem
cercados por sombras e escuridão, aqui
na noite eterna; que, envolto por pecados,
tiveram que suportar a sombra escura da morte
Agora, cheios de esperança, procuramos por cura
trazida aos povos do mundo pela palavra de Deus,
que estava no começo com o Pai Todo-Poderoso
igualmente eterno com Deus, e agora se tornou
carne, livre de falhas, nascido da virgem,
um alento para os sofridos. Deus estava conosco,
visto sem pecado; juntos estávamos
o poderoso filho do juiz e o filho do homem
em paz entre os povos. Podemos sempre encaminhar
nossos agradecimentos ao senhor da vitória por suas ações,
pois ele escolheu se enviar até nós.
Além de utilizar as Antífonas do Ó como inspiração, Cynewulf também utilizou partes da Homilia XXIX que trata de comentar os evangelhos no livro Homiliae XL in euangelia, também escrito por Gregório I e que trata sobre o dia da ascensão de cristo. Existe, portanto, uma forte influência em relação ao papa precursor do cristianismo nas ilhas britânicas.
Importante ressaltar que a autoria de “Christ” por Cynewulf ainda é objeto de estudos não conclusivos. Alguns estudiosos informam que Cynewulf foi um monge beneditino, outros que ele tenha sido o Bispo de Lindisfarne em 740, pois seu nome consta como bispo em uma lista, sendo sucessor do Bispo Ethelwold.
A preservação dos manuscritos
A Ordem de São Bento ou Ordem dos Beneditinos é uma das mais antigas partes da Igreja Católica, tendo sido fundada no século VI. Como visto acima o próprio Gregório I era membro desse grupo antes de ocupar a posição de Papa. E por ter participado daquela ordem havia uma forte ligação do papa com seus filiados.
Ao iniciar as primeiras atividades missionárias na Inglaterra, o Papa Gregório I deu atenção e apoio aos enviados. Em 597 foi fundado o primeiro monastério beneditino em Canterbury pelo missionário Agostinho. Com isso também foi fundado a primeira biblioteca monástica na Inglaterra.
O Papa Gregório I enviou nove livros ao Agostinho de Canterbury, o missionário. Os livros doados incluíam os Salmos de Agostinho, duas cópias dos evangelhos, duas martiriologias e uma análise dos Evangelhos e Epistolas. Posteriormente, Teodoro de Tarso trouxe livros gregos para Canterbury e ali fundou uma escola para ensinar o grego.
A biblioteca de Canterbury rapidamente se tornou respeitável. Foi então que ali os manuscritos de Cynewulf chegaram e foram copiados pelos monges beneditinos por volta de 980. Juntamente com outros escritos populares daquela época, formou-se o chamado “The Exeter Book”.
É do Exeter Book que se conhece uma série de escritos importantes em Anglo-saxão. A origem mais remota do manuscrito ocorre no momento em que o Bispo Leofric, o primeiro bispo de Exeter realiza a doação do livro para a biblioteca da catedral de Exeter em 1072. Desde então foi preservado e encontra-se guardado naquela biblioteca com o nome “Exeter Cathedral Library MS 3501” e também é chamado de Codex Exoniensis.

Páginas do Exeter Book
Os manuscritos se tornaram importantes na literatura inglesa e, por consequência, universalmente a ponto de que em 2016 a UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura) elencar o Exeter Book como um dos mais importantes livros da humanidade.
Segundo essa entidade internacional: “É um dos quatro únicos manuscritos poéticos importantes que sobreviveram na língua vernácula do inglês antigo”, disse a Unesco. “Uma vez que é o maior e provavelmente o mais antigo deles, e já que seu conteúdo não é encontrado em qualquer outro manuscrito, pode reivindicar ser o volume de fundação da literatura inglesa, um dos principais artefatos culturais do mundo”.
Muitos estudiosos do Anglo-saxão apresentaram suas traduções desses manuscritos. Um exemplo conhecido foi a tradução para o inglês moderno de Benjamin Thorpe publicada em 1842 com o título “Codex exoniensis. A collection of Anglo-Saxon poetry, from a manuscript in the library of the dean and chapter of Exeter, with an English translation, notes, and indexes”
Em 1892, Sir Israel Gollancz, renomado estudioso de línguas antigas, publicou o livro “Cynewulf’s Crist: An Eighth Century English Epic”. O livro se tornou bastante popular entre os cristãos por conter esses registros históricos. Além disso, o livro é bilíngue, apresentando a tradução para o inglês ao lado a transcrição em anglo-saxão extraída do manuscrito do Exeter Book.
Tolkien e a primeira leitura do poema de Cynewulf
Evidentemente que a criação da própria mitologia está intimamente associada com a vida do próprio de seu autor. Desde pequeno J.R.R. Tolkien apresentava uma criatividade singular. Era parte de seu entretenimento criar histórias com heróis e dragões, bem como línguas fictícias. Nesse sentido é que ao ser questionado sobre quando suas histórias tiveram origem ele afirmou:
“Esse negócio começou há tanto tempo que se poderia dizer ter começado no nascimento. Em algum momento por volta dos seis anos de idade tentei escrever alguns versos sobre um dragão sobre os quais agora nada lembro, exceto que continham a expressão um verde dragão grande e que fiquei perplexo por um longo tempo por terem me contado que ela deveria ser grande dragão verde.” (Carta 165, Para Houghton Mifflin Co, 30 de junho de 1955).
O nome “Dragão Verde” foi aproveitado posteriormente em suas histórias, porém não foi propriamente a origem de seu universo. A construção do que se tornaria o Legendarium foi um processo de anos de desenvolvimento e não surgiu de forma imediata.
O primeiro escrito relacionado a mitologia veio em sua juventude e os planos para construir o legendarium foram sendo desenvolvidos com o tempo. Mas é possível fixar uma data como marco inicial de todo o processo criativo. Foi em 24 de setembro de 1914, quando ele começou o seu primeiro poema relacionado à Earendil que pela primeira vez algo relacionado a esse novo mundo imaginário estava sendo escrito.

J.R.R. Tolkien em 1914
O fato de Tolkien ser um católico em um país com a maioria Anglicana trouxe direta e indiretamente determinadas influências que proporcionaram escolhas em seus escritos. Primeiramente pela busca de estudos relacionados ao período medieval e por conselhos colhidos diretamente do seu tutor. O Padre Francis Morgan passou a operar no oratório de Birmingham, onde acabou conhecendo uma jovem chamada Mabel Tolkien, que acabara de voltar do sul da áfrica com seus dois filhos J.R.R. Tolkien e Hilary Tolkien.
Pouco tempo depois, Mabel veio a falecer e coube ao Padre Francis Morgan a educação de J.R.R. Tolkien até a sua maioridade. O sacerdote foi um conselheiro e amigo por longos anos e com sua influência que Tolkien se tornou um católico assíduo.
Foi com a proteção e apoio financeiro do Padre Francis que entre os anos de 1905 a 1910, Tolkien estudou na King Edward School, onde teve acesso a vários livros épicos e de mitologias europeias. Foi nesse período que ele conheceu as lendas relacionadas aos nórdicos e outros contos.
Em 1911, ao começar os estudos em Oxford, seus estudos de textos antigos começaram a se aprofundar, especialmente em relação ao finlandês e suas primeiras leituras do épico Kalevala. Foi dentro desse ambiente acadêmico que ele começou a desenvolver os primeiros escritos sobre o que se tornaria o seu Legendarium.
No final de abril de 1913, Tolkien estava analisando diversos textos em línguas antigas. Segundo ele mesmo, era parte de um entretenimento pessoal: “Ao estudar profissionalmente o a[nglo]-s[axão] pela primeira vez (1913) — eu o havia feito como um passatempo infantil quando deveria estar aprendendo grego e latim”. (Carta 297 Rascunhos para uma carta para o “Sr. Rang” ago. de 1967).
Foi nessa época que se deparou com o texto ‘Cynewulf e Cyneheard’ que são parte das Crônicas Saxônicas (Saxon Chronicle). Dentro dessa pesquisa, agora analisando outro Cynewulf, acabou encontrando ´provavelmente o livro “Cynewulf’s Crist: An Eighth Century English Epic” de Sir Israel Gollancz.
Foi ao ler os versos em anglo-saxão que se sentiu admirado com a beleza das palavras, especialmente em dois versos: “Eala Earendel engla beorhtast, Ofer middangeard monnum sended” que traduzidos para o português é “Salve, Earendel, o mais brilhante dos anjos, sobre a terra-média mandado aos homens”.
A primeira atração de Tolkien em relação a essa palavra foi em relação a sua estética sonora, considerando um agradável idioma o Anglo-saxão:
“fiquei impressionado pela grande beleza dessa palavra (ou nome), inteiramente coerente com o estilo normal do a [nglo]-s[axão], mas eufônico em um grau peculiar naquele agradável, mas não “deleitável” idioma. (Carta 297 Rascunhos para uma carta para o “Sr. Rang” ago. de 1967).
Ao analisar as origens e significados da palavra Earendel o autor de O Senhor dos Anéis sugere o significado de ‘aurora’ ou um nome próprio para o João Batista do Novo Testamento:
Sua mais primitiva forma a-s registrada é earendil (oer-), posteriormente earendel, eorendel. Principalmente em notas sobre jubar=leoma; também sobre aurora. Mas também em Hom[ilias] Blick[ling] 163, se níwa éorendel, apl. A S. João Batista; e de forma mais notável Crist 104, éala! éarendel engla beorhtast ofer middangeard monnum sended. Frequentemente se supõe que se refere a Cristo (ou Maria), mas a comparação com as Homs. BI. sugere que se refere ao Batista. Os versos referem-se a um arauto e mensageiro divino, claramente não o sodfaesta sunnanleoma = Cristo. (Carta 297 Rascunhos para uma carta para o “Sr. Rang” ago. de 1967).
Interessante notar que o primeiro nome de Tolkien é “John”, que é o equivalente a João em Português. E pelo fato de ter nascido na oitava de São João, o evangelista, ele considerava esse como sendo o seu patrono, embora seus pais não tivessem dado esse nome pensando nessa ideia tão católica. Certamente essa conexão de nomes não interferiu no julgamento de Tolkien ao definir que Earendel tem o significado relacionado a João Batista, que é diferente daquele que ele considerava ser devoto.
Além desses significados acredita-se que “Earendel” fora originalmente o nome da estrela que anuncia a aurora, isto é, Vênus. Como Tolkien explica, o nome também parece ser aplicado “às vezes à estrela-d’alva, um nome de conexões mitológicas ramificadas (agora obscuras em sua maioria)”. (Carta 131, MiltonWaldman, 1951).
Ao analisar a palavra “eorendel”, Richard North parece apresentar as mesmas interpretações que o Tolkien fez da palavra, especificamente em relação a ela possuir um significado relacionado ao João Batista:
Eorendel. Cognato com Eostre são os primeiros elementos de três formas germânicas: Inglês Arcaico eorendel; o nórdico Aurvandill, cuja história é evidenciada de uma conexão entre deuses e constelações na mitologia nórdica, e Orendel, um herói cujas aventuras ocorrem no Oriente, em um romance do Médio-Alto-Alemão do século XII. Existem seis casos sobreviventes do Inglês Arcaico eorendel (variantes oerendil, earendil e earendel). Em dois desses casos, eorendel glosa Lat aurora (‘amanhecer’); Em dois mais, Lat iubar (‘radiancia’). Em mais um exemplo, em Christ 104-7, Jesus é invocado como “estrela da manhã, o mais brilhante dos anjos” (earendel, engla beorhtast), enviado sobre a terra para os homens, além de ser o “verdadeiro raio do sol, deslumbrante acima de todas as estrelas” (soðfæsta sunnan leoma, torht ofer tunglas), cuja luz ilumina cada era. Aqui o poeta, sem uma consideração exata para a astronomia, parece combinar tanto a estrela da manhã (isto é, Vênus como se eleva um pouco antes do sol em certos momentos) e os raios do sol na pessoa de Jesus. Em Christ 104, earendel provavelmente denota a “estrela da manhã” e nas Homilias Blicklings do século X, João Batista em seu nascimento é chamado tanto de “a nova estrela da manhã” (se niwa eorendel) quanto “o raio do verdadeiro sol”, assim como ele é o precursor de Jesus. Neste caso, o eorendel parece descrever um planeta, provavelmente Vênus, preparando o caminho para o sol (NORTH, 1997: 228-229).
Em relação a etimologia, a palavra anglo-saxã “Earendel” parece ter sua origem relacionada com a palavra da língua proto-germanica *Auziwandilaz, sendo uma fusão das palavras *auzi (“amanhecer, raiar,) e *wandilaz (“flutuante, vagante”), talvez via as formas intermediárias *Ēarwendel or *Ēarwandel. A palavra *Auziwandilaz também foi a origem de Erentil ou Orentil em Antigo Alto-Alemão, Auriwandalo na línguas dos Lombardos, Aurvandil em Nórdico Antigo e Auzandil em Gótico.
As palavras de Cynewulf ficaram encravadas na mente de Tolkien. Um eterno questionamento e meditação sobre essas palavras tomava conta do autor de O Senhor dos Anéis. Interessante verificar a carta escrita para Deirdre Levinson, em 20 de dezembro de 1956.
Nessa carta Tolkien saúda sua aluna na véspera de Natal e pergunta se ela gostaria de algum presente nessa celebração de fim de ano. No envelope está escrito a data da carta, 20 de dezembro de 1956 e os escritos de Cynewulf em anglo-saxão: “Eala Earendel engla beorhtast, Ofer middangeard monnum sended, ond soðfæsta sunnan leoma”.
Foi com a palavra “Earendel” em mente que em 24 de setembro de 1914, J.R.R. Tolkien escreveu o poema The Voyage of Éarendel the Evening Star (A Viagem de Earendel a Estrela Vespertina). Esse foi o primeiro texto relacionado ao seu legendarium e foi o seu primeiro passo.
Foi assim que que certa vez afirmou em carta para Clyde Kilby que “As palavras de Cynewulf, das quais, em última instância, brotaram toda a minha mitologia” (Carta para Clyde Kilby, dezembro de 1965).
De uma simples palavra, até o momento, em um manuscrito antigo e pouco estudado entre os homens modernos, surge uma nova mitologia, um novo mundo cheio de histórias que admiraram e surpreendem milhões de leitores por vários anos.
Cronologia:
590 – Um monge beneditino se torna o Papa Gregório I, Magno.
597 – Início das expedições dos missionários na Inglaterra, enviados por Gregório I. Nesse ano foi fundado o primeiro monastério beneditino em Canterbury pelo missionário Agostinho.
600 – Papa Gregório I, magno, escreve diversos textos, dentre eles a Homiliae XL in euangelia e As Antífonas do Ó.
740 – Cynewulf se torna bispo de Lindisfarne,
780 – Cynewulf escreve o poema Christ, baseado em textos do Papa Gregório I.
980 – Monges beneditinos compilam diversas poesias em anglo-saxão, que inclui os poemas de Cynewulf.
1072 – Leofric, o primeiro bispo de Exeter realiza a doação dos manuscritos para a biblioteca da catedral de Exeter.
1842 – Benjamin Thorpe publicada a tradução do Exeter Book com o título “Codex exoniensis”.
1892 – Em 3 de Janeiro nasce J.R.R. Tolkien. Sir Israle Gollancz publica o livro “Cynewulf’s Crist: An Eighth Century English Epic”.
1913 – Em abril Tolkien lê o poema “Chist” de Cynewulf.
1914 – Em 24 de setembro Tolkien escreve o poema “A Viagem de Earendel a estrela vespertina”.
BIBLIOGRAFIA UTILIZADA:
CARPENTER, Humphrey, J.R.R. Tolkien, uma biografia, Martins Fontes, 1992.
HAMMOND, Wayne G. & SCULL, Christina, J.R.R. Tolkien Companion and Guide, Reader’s Guide, HarperCollins, 2006.
GOLLANCZ, Israel, Cynewulf’s Crist: An Eighth Century English Epic. London: David Nutt.1892.
NORTH, Richard, Heathen Gods in Old English Literature, Cambridge Studies in Anglo-Saxon England 22, Cambridge, University Press, 1997.
THORPE, Benjamin. Codex exoniensis. A collection of Anglo-Saxon poetry, from a manuscript in the library of the dean and chapter of Exeter, with an English translation, notes, and indexes. Society of Antiquaries of London, Londres,1842.
THURSTON, Herbert. “Cynewulf.” The Catholic Encyclopedia. Vol. 4. New York: Robert Appleton Company, 1908. Acessado em: 1 de Maio de 2017 <http://www.newadvent.org/cathen/04581d.htm>.
TOLKIEN, J.R.R. As Cartas de J.R.R. Tolkien. Editado por Humphrey Carpenter com assistência de Christopher Tolkien, Arte e Letra, Curitiba, 2006.
KENNEDY, Charles W. (ed.), Cynewulf. Christ, Old English Series, Cambridge (Ontario), In parentheses, 2000.
KILBY, Clyde S. Tolkien & The Silmarillion. Wheaton, Illinois: Harold Shaw Publishers, 1976.
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