by Eduardo Stark
Éala! éarendel engla beorhtast, ofer middangeard monnum sended.
(Salve, Earendel, o mais brilhante dos anjos, sobre a terra-média mandado aos homens)
Foi com a palavra “Earendel” em mente que em 24 de setembro de 1914, J.R.R. Tolkien escreveu o poema The Voyage of Éarendel the Evening Star (A Viagem de Earendel a Estrela Vespertina). Esse foi o primeiro texto relacionado ao seu legendarium e foi o seu primeiro passo.
Foi por isso que certa vez afirmou em carta para Clyde Kilby que “As palavras de Cynewulf, das quais, em última instância, brotaram toda a minha mitologia” (Carta para Clyde Kilby, dezembro de 1965).
De uma simples palavra em um manuscrito antigo e pouco estudado entre os homens modernos, surge uma nova mitologia, um novo mundo cheio de histórias que admiraram e surpreendem milhões de leitores por vários anos.
Em Setembro de 1914, Tolkien, junto com seu irmão Hilary, foi visitar sua tia Jane Neaves na fazenda Phoenix em Gedling. Um local distante da turbulência da cidade que estava cheia de temores quanto a guerra mundial. Foi justamente em 24 de setembro que ele experimentou escrever um poema utilizando a palavra “Earendel” que tanto o espantou poucos meses atrás.
Questionamentos eram comuns em relação a palavra, tais como: O que significa Earendel? Em que contexto pode ser utilizado? Essa é uma palavra substantiva?
Ao pesquisar com mais profundidade Tolkien percebe a multiplicidade de significados e sua relação com mitologia antiga e histórias de heróis e deuses de origens germânicas. E desses conceitos é que começa a escrever o poema.
As primeiras conexões começam a serem feitas a partir das palavras de Cynewulf e o significado de Earendel. Primeiramente em ter a noção de que é uma palavra mais antiga que o próprio anglo-saxão e que tem uma ligação com a mitologia. Também deve-se notar a sua relação com o herói germânico Orendel, que realizou viagens marítimas. O vínculo de significado da palavra Earendel com Orendel é feito por Jacob Grimm em seu livro Deutsche Mythologie. Então se extrai da palavra o seguinte:
1 – Uma relação com uma mitologia
2 – Um Herói chamado Earendel (Orendel)
3 – Ele realiza uma viagem marítima
Mas adotar a história de Orendel apenas iria empobrecer o significado do nome, que também tem relação com o Sol Nascente ou algum astro que emita uma luz. Assim, seria necessário fazer mais uma conexão. Para que a palavra tenha a sua aplicação em todos esses significados Tolkien associou o herói a luz e a estrela da manhã Como se fosse um navio iluminado que estivesse em meio a escuridão do mar, dando a imagem como se fosse uma estrela.
1 – Uma relação com uma mitologia
2 – Um Herói chamado Earendel (Orendel)
3 – Ele realiza uma viagem marítima
4 – No navio há uma lâmpada que ilumina a escuridão intensa do mar
O herói parte em direção ao Oeste. Existe uma série de lendas relacionadas a viagens para o Oeste na cultura europeia. A começar por Atlântida ou mesmo a lenda de Hy Breazil, ou Avalon. Essa conexão envolvia diversos questionamentos que deveriam ser respondidos posteriormente: Que terra desconhecida é essa?
1 – Uma relação com uma mitologia
2 – Um Herói chamado Earendel (Orendel)
3 – Ele realiza uma viagem marítima
4 – No navio há uma lâmpada que ilumina a escuridão intensa do mar
5 – A viagem vai para terras desconhecidas no Oeste
Essas terras desconhecidas parecem ter um nome. Isso pode ser observado agora no segundo verso do poema: Éala! éarendel engla beorhtast ofer middangeard monnum sended. A palavra anglo-saxã “Middangeard” tem o mesmo significado que Midgard, que no inglês moderno é o mesmo que Middle-earth, que é traduzido para o Português como Terra-média.
Em uma tradução simples o significado seria o equivalente ao nosso “mundo”, “planeta terra”. Mas assim como em “Earendel”, essa palavra tem uma conexão com as mitologias antigas, em especial a mitologia germânica e islandesa, em que Midgard é um região dos vários reinos existentes em que os humanos vivem.
Assim, o que se pode notar dos dois versos que Tolkien admirou são as seguintes informações:
1 – Uma relação com uma mitologia
2 – Um Herói chamado Earendel (Orendel)
3 – Ele realiza uma viagem marítima
4 – No navio há uma lâmpada que ilumina a escuridão intensa do mar
5 – A viagem vai para terras desconhecidas no Oeste
6 – Uma relação com a chamada “Terra-média”
A partir dessas premissas Tolkien começou a desenvolver seu primeiro escrito do que viria se tornar sua mitologia.
No poema a rima ocorre cada palavra oxítona, sendo uma palavra que rima com outro no mesmo verso e no seguinte uma palavra final que fará par com a palavra do verso subsequente. Assim, as rimas são alternadas ou cruzadas, seguindo o esquema AABAAB. Estilo semelhante pode ser visto no poema de Percy Bysshe Shelly (1792-1822) intitulado Syracuse Arethusa (LONGFELLOW. p. 1876-1879):
Arethusa arose From her couch of snows
In the Acroceraunian mountains,
From cloud and from crag, With many a jag,
Shepherding her bright fountains.———-
Arethusa surgiu, de seu sofá de neve partiu
Nos Acroceraunianos montes,
Da nuvem e fragada, que muito entalhada,
Pastoreando suas fontes brilhantes.
Não é possível precisar se Tolkien teria de fato se valido especificamente dos poemas de Shelly, porém é uma hipótese considerada pelos estudiosos tolkienianos John Garth e Hugo Brogan. Há também elementos que Tolkien parece ter utilizado como fonte como a Iliada de Homero e o épico anglo-saxão Beowulf.
O poema foi publicado posteriormente no livro The Book of Lost Tales 2 (p. 271-3), editado por Christopher Tolkien. Abaixo segue uma tradução das duas primeiras estrofes do poema, com estilo que visa se adequar a métrica e rima do poema original:
Eärendel surgiu onde a sombra fluiu,
No Oceano as silenciosas beiradas;
Do alvor sombroso como um raio luminoso
Onde as margens são escuras e escarpadas
Lançou sua barca como prateada faísca
Da última e solitária terra;
No iluminado alento do dia ígneo morto
Partiu da ocidental terra.Iniciou sua jornada durante a outonada
Do Sol nascente,
E viajando por rastros além de muitos astros
Em seu galeão reluzente.
Na maré cheia da escuridão passeia
O navio celeste,
E na noite reluz com suas velas de luz
Como a estrela passando ao oeste.——
Eärendel arose where the shadow flows
At Ocean’s silent brim;
Through the mouth of night as a ray of light
Where the shores are sheer and dim
He launched his bark like a silver spark
From the last and lonely sand;
Then on sunlit breath of the day’s fiery death
He sailed from Westerland.He threaded his path o’er the aftermath
Of the splendour of the Sun,
And wandered far past many a star
In his gleaming galleon.
On the gathering tide of darkness ride
The argosies of the sky,
And spangle the night with their sails of light
As the streaming star goes by.
Em 27 de novembro de 1914, Tolkien leu pela primeira vez o seu poema para um grupo de pessoas no Essay Club (Clube de Ensaios) em Oxford. Segundo ele “Houve um ensaio ruim, mas uma discussão interessante. Essa foi também uma reunião de composições e li “Earendel”, que recebeu boas críticas” (Carta 2, para Edith Bratt, 27 de novembro 1914).

Orendel, no manuscrito original
Nessa mesma época Tolkien se encontrou com seus amigos da T.C.B.S e apresentou o poema.Especialmente G.B. Smith leu atentamente o texto e fez sugestões e questionamentos. Na biografia escrita por Humphrey Carpenter há esse pequeno relato:
Ele havia mostrado os versos originais sobre Earendel a G. B. Smith, que dissera que gostava deles mas não sabia do que tratavam realmente. Tolkien respondera: “Não sei. Tentarei descobrir.” Não tentaria inventar: tentaria descobrir. Ele não se via como um inventor de histórias, mas como um descobridor de lendas. E isso devia-se na verdade às suas línguas particulares. (CARPENTER, p.)
A resposta de Tolkien parece ser enigmática e traduz a ideia que o autor tem sobre como construir suas histórias. Para Tolkien as histórias começavam sempre com um palavra e a partir dela é que se podia extrair o significado e assim suas histórias. Isso o motivava intelectualmente e foi assim que começou a escrever sobre Earendel.
Contudo, a dúvida de G.B. Smith parecia muito pertinente. Afinal, de qual mitologia se tratava esse poema? quem era esse marinheiro? E que terra a oeste é essa? seria uma ilha ou continente? Ou mesmo um mundo novo? Qual a relação dessa terra com a chamada “Terra-média”?
Bem provável que Tolkien se questionava sobre esses mesmos pontos, e foi deles que suas primeiras histórias foram sendo desenvolvidas e toda sua mitologia se formou.
O significado de Earendil no mundo mitológico de Tolkien
Importante ser observado que mesmo tendo escrito esse poema sobre um personagem protagonista de suas histórias, ele só passou a fazer parte do legendarium, do conjunto de histórias mitológicas, posteriormente através de sua adoção. Afinal Tolkien ainda não sabia o verdadeiro significado de Earendel e de certa forma ainda não tinha uma consciência de construir um mundo ficcional, conforme escreveu:
Antes de 1914, escrevi um “poema” sobre Earendel que lançava seu navio como uma centelha brilhante dos portos do Sol. Adotei-o em minha mitologia — na qual ele tornou-se uma figura principal como um marinheiro, e eventualmente como uma estrela anunciadora e um sinal de esperança aos homens. Aiya Eärendil Elenion Ancalima (II 329) “salve Earendil, a mais brilhante das Estrelas” é remotamente derivada de Éala Éarendel engla beorhtast. (Carta 297 Rascunhos para uma carta para o “Sr. Rang” ago. de 1967)
Assim, dentro da própria mitologia Tolkieniana o significado do nome Earendel se tornou diferente. Não tem mais relação com o advento de cristo ou mesmo sua simbologia mitológica germânica. Agora a palavra passa a ser vista dentro do contexto do mundo subcriado.
Quando Tolkien escolhia uma palavra para colocar em seu mundo, normalmente ela perdia o seu vinculo com a nossa realidade para ser inserida dentro do contexto de significado do seu mundo.
No caso da palavra “Earendel” foi adotada em seu mundo, mas o seu significado não é o mesmo, o que se aproveitou foi apenas o aspecto estético sonoro. A única relação que há de significado é a ideia de estrela da manhã com o personagem que na história traz essa ideia. Conforme Tolkien diz:
A “fonte”, caso haja alguma, forneceu unicamente a sequencia sonora (ou sugestões para o estímulo desta), e seu propósito na fonte é totalmente irrelevante, exceto no caso de Earendil (Carta 297 Rascunhos para uma carta para o “Sr. Rang” ago. de 1967)
O final da palavra foi alterado e a palavra ficou como “Earendil”, deixando de ser uma palavra anglo-saxã e se torna uma palavra élfica, como Tolkien atesta: “Na realidade, seu nome é Élfico e significa o Grande Marinheiro ou Amante-do-Mar” (Carta 131, MiltonWaldman, 1951). Em carta Tolkien explica a etimologia élfica para essa palavra e como ele fez a alteração para adotá-la:
Mas o nome não podia ser simplesmente adotado dessa forma: ele tinha de ser acomodado à situação linguística Élfica, ao mesmo tempo em que um lugar para essa pessoa era criado nas lendas. Disso, há muito tempo na história do “Élfico”, que após muitos começos experimentais na mocidade estava começando a tomar uma forma definida à época da adoção do nome, eventualmente surgiu (a) o radical E.C. *AYAR “Mar”, aplicado primeiramente ao Grande Mar do Oeste, que se situava entre a Terra-média e Aman, o Reino Abençoado dos Valar; e (b) o elemento ou base verbal (N)DIL, “amar, ser devotado a” — que descreve a atitude de alguém a uma pessoa, coisa, curso ou ocupação ao qual se dedica por conta própria. (Carta 297 Rascunhos para uma carta para o “Sr. Rang” ago. de 1967)
Assim, Earendil na mitologia de Tolkien está relacionada com um personagem. Mas sua relação com a estrela d’alva parece permanecer, tendo em vista que “O navio de Earendil, adornado com a última Silmaril, é colocado no céu como a mais brilhante das estrelas.” (Carta 131, para Milton Waldman).

Earendil, arte de Ted Nasmith
O vínculo com o significado original, relacionado a figura de Jesus Cristo, ou mesmo João Batista ou qualquer relação com o nosso mundo deixou de ser observada, tendo em vistas aspectos da própria história de seu mundo que não se adequariam a essa forma de equiparação.
Além do mais, Tolkien era contrário a qualquer forma de alegoria o que implica em afirmar que ele não tinha intenção de incluir um personagem com um significado relacionado a nosso mundo, conforme atesta:
O uso de éarendel no simbolismo cristão a-s como o arauto do nascimento do verdadeiro Sol em Cristo é completamente estranho ao meu uso. A Queda do Homem está no passado e fora de cena; a Redenção do Homem no futuro distante. Estamos em uma época em que a existência do Deus Único, Eru, é de conhecimento dos sábios, mas não está acessível exceto pelos ou através dos Valar, embora Ele ainda seja lembrado em preces (não-pronunciadas) por aqueles de origem Númenóreana. (Carta 297 Rascunhos para uma carta para o “Sr. Rang” ago. de 1967)
Pode-se verificar toda uma nova etimologia dentro do mundo de Tolkien para essa palavras. ëar “mar” (ver. WJ:413), pl. ëari “mares” (FS, LR:47); Eär “o Grande Mar”, ablativo Eärello “do Grande Mar”, et Eärello “fora do Grande Mar” (EO). Em nomes como Eärendil “Amigo do Mar”, Eärrámë “Além do Mar” (SA), Eärendur nome masc., *”Servo do Mar”; em efeito uma variante de Eärendil (Apêndice A). Usado como “marinheiro (profissional)”. Nome fem. Eärwen “Dama do Mar” (Silm). Eärnil nome masc., contração de Eärendil (Apéndice A).
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