by Júnior Gonçalves
O conto de Aldarion e Erendis, encontrado em “Contos Inacabados”, é uma história recheada de altos e baixos, personagens controversos e de muitas intrigas. Decidi escrever este texto porque, neste capítulo, surgem algumas discussões que divido em dois tópicos:
- O papel de Erendis nos costumes Númenorianos.
- Erendis e o feminismo.
É importante dizer que, caso não tenha lido esta história ainda, irá receber alguns “spoilers”. Se mesmo assim optar por continuar a leitura, espero que sinta-se inspirado para investigar mais e contribuir com seu comentário.
O Papel de Erendis nos Costumes Númenorianos
Criada no ano 32 da segunda era, a ilha de Númenor foi um presente dos Valar para os homens com o propósito de servir de refúgio e paz após a grande guerra. A ilha estava situada entre as terras imortais dos Valar e a Terra-Média.
O quinto rei da descendência de Elendil foi Meneldur, que se casou com Almarian. Seus filhos foram Anardil (mais tarde chamado de Aldarion), Ailinel e Almiel.
Recontar a história não é o meu objetivo aqui, portanto não irei me prolongar em alguns detalhes. Resumidamente: Aldarion foi um herdeiro do trono muito incomum e amava navegar e se deter na arte de construir navios, pouco se preocupava com os assuntos internos e políticas de Númenor.
Aos 25 anos, Aldarion ganhou seu primeiro barco e fez sua primeira grande viagem, onde conheceu Círdan e Gil-galad, seu amor pela navegação só aumentou. Seu pai não aprovava tais atitudes e temia pelo futuro da ilha, e então limitou o corte de árvores para construção de embarcações, mesmo assim Aldarion não refreou seu desejo pelo mar, e decidiu explorar madeira na Terra-Média, criando assim o primeiro porto númenoriano (Vinyalonde).
Almarian apoiava seu filho em tudo que fazia e teve forte participação na apresentação de Erendis à Aldarion. Em uma das festas dadas pelo rei, veio do oeste da ilha um homem chamado Beregar, da descendência de Beor, acompanhado de sua filha, uma mulher de grande beleza, cabelos escuros e límpidos olhos cinzentos, que acabou tornando-se dama da casa da rainha, seu nome era Erendis. Ela logo se encantou por Aldarion:
Mas Erendis avistou Aldarion que passava a cavalo, e por sua beleza, e pelo esplendor de seu porte, ela quase não tinha olhos para mais nada (…) Erendis julgava que a posição de Aldarion era elevada demais. No entanto, depois disso, não olhou com estima para nenhum homem, e dispensou todos os pretendentes.
Aldarion também notou Erendis, porém não prosseguiu em corteja-la e continuou com suas viagens.
Em Númenor existia o costume de que, antes de qualquer embarcação sair em alto mar, uma mulher, normalmente parente do capitão, depositava o Ramo do Retorno na proa, que provinha da árvore Oiolaire, que em Quenya significa “Sempre-Verão”, até mesmo os eldar usavam estes ramos em seus navios como sinal da amizade por Ossë e Uinen (maiair de Ulmo).
Cabe aqui uma pequena curiosidade sobre este casal de maiar: Ossë, no início da história de Arda, foi corrompido por Morgoth, porém Aulë pediu encarecidamente para que Uinen o persuadisse a (voltar), e assim o fez. Desde então, Ossë e Uinen formam o casal que cuida dos mares sob ordem de Ulmo, e são muito requisitados pelos marinheiros numenorianos.
É interessante notar uma coincidência entre a história deste casal e a história de Aldarion, onde Erendis, em determinado momento, tenta persuadi-lo a voltar de uma viagem e ficar com ela na ilha, porém a inversão de papéis é notável: enquanto Uinen tentava persuadir Osse para voltar pros mares, Erendis por sua vez, tentava persuadir Aldarion a ficar em terra firme.
O Rei Meneldur, enfurecido com as atitudes de seu filho, proibiu que a Rainha levasse o Ramo do Retorno ao navio de Aldarion, foi então que Erendis se voluntariou para levar, e nesta atitude simples, foi que o príncipe olhou com amor para ela:
Erendis lá chegou, por pouco que apreciasse o ruído e a agitação do grande porto e os gritos das gaivotas. Aldarion saudou-a com espanto e alegria.
— Trouxe-lhe o Ramo do Retorno, senhor, da Rainha — disse ela.
— Da Rainha? — repetiu Aldarion em outro tom.
— Sim, senhor, mas pedi a permissão dela para assim fazer. Outros além da sua própria família hão de alegrar-se com seu retorno, assim que seja possível.
Nesse momento, Aldarion pela primeira vez olhou com amor para Erendis; e por muito tempo ficou de pé na popa, olhando para trás.
Nota-se aqui o importante papel da mulher na cultura numenoriana. As mulheres eram responsáveis por levar “sorte / esperança de retorno” aos marinheiros. Pelo fato de Aldarion amar muito o mar, este amor foi estendido a Erendis, quando notou a preocupação da parte dela em manter tal costume.
Em uma das viagens, Aldarion trouxe um presente para Erendis, um diamante que ela mandou engasta-lo e o transformou em uma coroa e, a partir daí, foi chamada de Elestirne, que signifca “A Senhora da Fronte Estrelada”. Mais tarde este ato influenciou toda a geração de Reis númenorianos, que passaram então a usar uma coroa com pedras preciosas.
Avançando na linha do tempo, os eventos que acontecem posteriormente, culminam em um novo costume númenoriano. Devido aos grandes conflitos que Aldarion e Erendis tiveram no relacionamento, Tar-Aldarion decidiu que a linhagem real só poderia se dar por descendentes de Elros, pois estes tinham a vida estendida:
Aldarion acrescentou que o Herdeiro do Rei não deveria se casar, a não ser na linhagem de Elros, e que todos os que fizessem o contrário deixariam de ser elegíveis à posição de Herdeiro. Diz-se que essa estipulação decorreu diretamente do casamento desastroso de Aldarion com Erendis, e de suas reflexões a respeito; pois Erendis, não sendo da Linhagem de Elros, tinha um tempo de vida mais reduzido, e Aldarion cria que nisso residia a raiz de todos os seus aborrecimentos.
Em outra ocasião, após o nascimento de Ancalime (única herdeira do casal), Aldarion decidiu viajar novamente e isso irritou profundamente Erendis. Esta viagem marca o fim do relacionamento, tamanho descontentamento que causou. Chegado o dia de sua partida, ninguém veio colocar o Ramo do Retorno na proa de seu barco, acontecimento que perturbou muito Aldarion, porém a esposa de outro marinheiro cumpriu com a tradição. Este foi um grande marco que influenciou posteriormente esse costume e a decisão de não colocar mais o ramo:
Está registrado que não colocou na proa de Hirilonde nenhum ramo de oiolaire, e sim a imagem de uma águia de bico dourado e olhos feitos de pedras preciosas, que era presente de Círdan. Lá estava pousada, pela arte de quem a fizera, como que pronta a voar certeira até uma meta distante que divisara. — Este sinal há de nos conduzir ao nosso alvo — disse ele. — Da nossa volta que cuidem os Valar, se nossos atos não lhes desagradarem.
É curioso que, devido a um relacionamento ruim, todas as gerações de Reis foram afetadas. Mesmo que um herdeiro se apaixonasse verdadeiramente por uma mulher, se ela não fosse da linhagem de Elros, o casamento não seria permitido. E que também, o costume do Ramo do Retorno, fora quebrado e trocado.
Erendis e o Feminismo
Não pretendo discutir aqui quaisquer correntes filosóficas do feminismo, e nem acusar alguma das partes (Aldarion ou Erendis) pelos seus atos. Vejo este capítulo como um conto importante para a narrativa de Tolkien, uma vez que é uma obra recheada de intrigas que se aproximam da vida real.
O fato de Tolkien escrever sobre o descontentamento é algo relevante, da parte de Erendis, por ter sido “abandonada”. Isto está muito evidente neste trecho do texto, que mostra como ela via os homens de Númenor:
Os homens de Númenor são meios-elfos (disse Erendis), em especial os nobres; não são nem uma coisa nem outra. A vida longa que lhes foi concedida engana-os, e brincam no mundo, crianças na mente, até que a velhice os encontre — e então muitos só abandonam o jogo ao ar livre pelo jogo em suas casas. Transformaram sua brincadeira em assuntos importantes e assuntos importantes em brincadeira. Gostariam de ser artesãos, mestres das tradições e heróis, tudo ao mesmo tempo; e as mulheres são para eles apenas chamas na lareira — para outros cuidarem até que eles se cansem de brincar, à tardinha. Todas as coisas foram feitas para servi-los: as colinas são para pedreiras, os rios para fornecer água ou girar rodas, as árvores para tábuas, as mulheres para a necessidade de seu corpo ou, se forem belas, para adornar sua mesa e seu lar; e crianças para serem provocadas quando não há mais nada para fazer — mas brincariam da mesma forma com as crias dos seus cães. São corteses e bondosos com todos, joviais como cotovias pela manhã (se brilhar o sol), pois nunca se encolerizam se puderem evitá-lo. Os homens devem ser alegres, afirmam, generosos como os ricos, dando o que não necessitam. Mostram ira somente quando se dão conta, de repente, de que existem outras vontades no mundo além da sua. Então são implacáveis como o vento do mar se qualquer coisa ousar se opor a eles. Assim é, Ancalime, e não podemos alterar isso. Pois os homens formaram Númenor: os homens, esses heróis de outrora dos quais eles cantam — de suas mulheres ouvimos falar menos, exceto que choravam quando seus homens eram mortos. Númenor devia ser um repouso após a guerra. Mas. quando se cansam do repouso e dos jogos da paz, logo voltam ao seu grande jogo, assassinato e guerra. Assim é; e fomos postas aqui entre eles. Mas não temos de consentir. Se também nós amamos Númenor. vamos desfrutá-la antes que eles a arruinem. Também nós somos filhas dos grandes, e temos nossas próprias vontades e coragem. Portanto não se curve. Ancalime. Curve-se um pouco uma vez, e eles a curvarão mais até que você esteja inclinada até o chão. Deite suas raízes na rocha, e enfrente o vento, por muito que ele leve todas as suas folhas.
Não há muito o que acrescentar depois de tal texto, Erendis sofreu muito com a incompatibilidade de seu marido, e Tolkien coloca muito bem esse sentimento em palavras. Este trecho é prova de que Tolkien escrevia desprovido de preconceitos.
O Professor imergia em cada personagem, em cada história conseguia ver os dois lados da moeda e, por isso, construiu narrativas sem apelos emotivos enraizados em preconceitos mesquinhos. Muitas pessoas ainda o acusam de diversas inverdades, tais como de que ele era machista e racista, porém é evidente que são acusações motivadas por ignorância de seus escritos.
É possível notar que Erendis tinha consciência da cultura machista em Númenor, e ela exigia igualdade de gênero. Nota-se também um grande amadurecimento das suas ideias quando, no início, ela se mostra muito emotiva e vingativa para com os homens:
Pois Erendis só tinha serviçais em sua casa, e todas eram mulheres. E procurava sempre moldar a filha conforme sua própria mente, e alimentá-la com seu próprio rancor contra os homens. Na verdade Ancalime raramente via algum homem, pois Erendis não usava pompa, e seus poucos serviçais da fazenda e pastores tinham uma habitação ao longe. Outros homens lá não chegavam, exceto raramente algum mensageiro do Rei, que logo ia embora e logo partia a cavalo, pois aos homens parecia haver na casa um ar gélido que os punha em fuga, e enquanto estavam lá sentiam-se constrangidos a falar a meia voz.
Em outro momento, anterior aos acontecimentos que culminaram neste trecho, a mãe de Erendis (Núneth), dá um conselho para ela:
Uma mulher tem de compartilhar o amor do marido por seu trabalho e o fogo do seu espírito, ou então transformá-lo-á em algo que não pode ser amado.
Podemos concluir que Erendis é uma personagem feminista e, devido a um grande trauma em seu relacionamento, ela se rebela contra a cultura machista de Númenor.
O papel de Erendis na história de Númenor é de suma importância, pois ela foi a primeira rainha a se opor às decisões do rei (seu marido) e aos costumes da época, ao não colocar o Ramo do Retorno no barco de Aldarion). Foi também Erendis quem criou a tradição do uso da coroa estrelada para quem governasse Númenor. Porém, seu final não é feliz:
De Erendis está dito que, quando a velhice se abateu sobre ela, negligenciada por Ancalime e em amarga solidão, ela voltou a ansiar por Aldarion (…) por fim deixou Emerie e viajou incógnita e desconhecida até o porto de Rómenna. Lá parece que encontrou seu destino; mas somente as palavras “Erendis pereceu na água no ano de 985” permanecem para indicar como isso ocorreu.
A história de Aldarion e Erendis traz grandes lições de relacionamento, é necessário haver um respeito mútuo entre o casal, saber apreciar as particularidades um do outro, e é necessário também ter humildade para aceitar as diferenças de opiniões.
Aldarion é descrito como um homem orgulhoso que errou em diversos momentos de sua vida, porém contribuiu muito fazendo o contato entre Númenor e a Terra-Média, mesmo à custa de seu relacionamento.
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