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O Poema “O Clamor do Menestrel” de J.R.R. Tolkien

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Earendil em seu barco branco…

by Eduardo Stark

Ao concluir seu primeiro poema relacionado ao legendarium em 24 de Setembro de 1914, “A Viagem de Earendel, a estrela vespertina”, Tolkien começou a se questionar do que se tratava aquele poema. O conteúdo não havia sido desenvolvido ou planejado em forma uma narrativa coerente. Mesmo sendo o autor, o poema surgiu quase que espontaneamente para reverenciar a palavra “Earendel” que tanto o havia impressionado ao ter acesso aos versos de Cynewulf.

Quem seria aquele personagem “Earendel” e para qual direção seu barco seria conduzido e quais aventuras ele sofreria era o grande questionamento que havia em sua mente no final de 1914. Para solucionar isso, começou com pequenas anotações, tentando relacionar nomes e esquemas. Foi nesse período que fez o seu primeiro rascunho tentando vincular elementos da viagem de São Brandão com o personagem Earendel, que foi analisado anteriormente. Esse primeiro rascunho se encontra no verso de um poema e por isso associado a ele como um dos primeiros escritos do Tolkien.

Foi no inverso de 1914, quando Tolkien estava se questionando sobre Earendel, que surgiu o seu segundo poema relacionado ao Legendarium, intitulado “The Bidding of the Minstrel, from the Lay of Earendel”, aqui traduzido como “O Clamor do Menestrel, da Balada de Earendel”.[1]

O poema foi escrito em Oxford na St. John’s Street, quando Tolkien ainda permanecia na Universidade como estudante, enquanto o mundo estava aflito com o inicio da Primeira Guerra Mundial. A data do poema é imprecisa e deriva apenas de uma nota apressada do Tolkien no manuscrito indicando que foi composto no “inverno de 1914”, provavelmente nos últimos dez dias de dezembro daquele ano. Segundo Christopher Tolkien “não há nenhuma outra evidência que comprove a data” [2], assim o que determina a época de escrita do poema é a confiança na memória de Tolkien, já que não há outro modo de prova que diga o contrário (por exemplo: testemunhas, publicação, registro, etc).

Embora tenha sido escrito em 1914, em anos seguintes Tolkien fez alterações, mudou títulos, dividiu o poema em partes separadas. Sobre a condição dos manuscritos do poema e sobre seu processo de escrita, Christopher Tolkien comenta o seguinte:

“O poema era então muito maior do que se tornou, mas os trabalhos são excessivamente brutos. Eles não têm nenhum título. Ao mais antigo texto acabado um título foi apressadamente acrescentado mais tarde:aparentemente se lê “O Menestrel renuncia a música”. O título tornou-se então ‘A Balada de Earendel’ e mudou na último texto para ‘O Clamor do Menestrel, da Balada de Earendel’.Há quatro versões seguintes ao  rascunho original bruto, mas as alterações feitas neles eram leves” [3]

Segundo Christina Scull e Wayne Hammond (Reader’s Guide, p.107), por volta de 17 e 18 de março de 1915, Tolkien dividiu o poema em duas partes:“The Bidding of the Minstrel” (O Clamor do Menestrel) e “The Mermaid’s Flute” (A Flauta da Sereia). Este último poema ainda é um material inédito e permanece guardados nos arquivos em forma de manuscrito. Novamente, o autor fez uma série de revisões em O Clamor do Menestrel no período de 1920 a 1924.

Após o falecimento de Tolkien em 1973, The Bidding of the Minstrel foi publicado no livro The Book of Lost Tales, Part Two, com edição e comentários de Christopher Tolkien, em 1984. O livro é o segundo volume da serie de doze livros chamada “A História da Terra-média”, que ainda não foi traduzido oficialmente para o Português. 

Christopher Tolkien apresenta a última versão do poema, porém ressalta que os termos “Eldar” e “Elven”(Elfos) foram acrescentados em data posterior para substituir “fairies” (Fadas) e “fairy” (Fada).[4] A relação de Tolkien com os elfos viria um pouco mais tarde quando começou a desenvolver as palavras de sua língua “Qenya”. Além disso, na quinta linha o menestrel parece responder ao pedido para cantar mais sobre as histórias de Earendel “Então escute – um conto do imortal anseio pelo mar”, enquanto na versão mais recente ficou “Cante-nos – um conto do imortal anseio pelo mar” [5].

Os Menestréis na idade média inglesa

O menestrel é uma figura que remete ao medievalismo europeu. Inicialmente eram relacionados a atividades circenses e de entretenimento. Com o tempo eles ficaram conhecidos como músicos especializados que narravam histórias de eventos antigos ou criados. A Enciclopédia Britânica apresenta uma síntese histórica sobre o termo “Minstrel” (menestrel) entre os britânicos medievais:

Os saxões, bem como os antigos dinamarqueses, estavam acostumados a manter os homens desta profissão com a mais alta reverência. Sua habilidade foi considerada como algo divino, suas pessoas eram consideradas sagradas, seu comparecimento era solicitado pelos reis, e eles estavam todos carregados com honras e recompensas. Em suma, os poetas e a sua arte se mantiveram entre eles naquela admiração grosseira que um povo ignorante mostra sempre, tal como os excede em realizações intelectuais. Quando os saxões se converteram ao cristianismo, na medida em que as letras prevaleceram entre eles, essa admiração rude começou a diminuir, e a poesia não era mais uma profissão peculiar. O poeta e o menestrel se tornaram duas pessoas. A poesia foi cultivada por homens de letras indiscriminadamente, e muitas das rimas mais populares foram compostas em lazer e reclusão em mosteiros. Mas os menestréis continuaram uma ordem distinta de homens, e ganharam seus meios de vida cantando versos com harpa nas casas dos grandes. Lá, eles ainda eram recebidos hospitaleiramente e respeitosamente, e mantinham muitas das honras concedidas aos seus predecessores os Bardos e Escaldos. E, de fato, embora alguns deles apenas recitassem as composições dos outros, muitos deles ainda compuseram músicas próprias, e provavelmente poderiam inventar algumas estrofes na ocasião. Não há dúvida de que a maioria das velhas baladas heroicas foram produzidas por esta ordem de homens. Pois, embora alguns dos romances métricos maiores possam vir da caneta dos monges ou outros, ainda assim as narrativas menores provavelmente foram compostas pelos menestréis que as cantaram. A partir das incríveis variações que ocorreram em diferentes cópias dessas peças antigas, fica evidente que eles não tinham nenhum escrúpulo ao alterar as produções do outro, e o recitador adicionava ou omitia estrofes inteiras de acordo com sua fantasia ou conveniência. (Encyclopedia Britannica, 6 ed. Vol. XIV, 1823p.275-276) 

Diante de uma grande maioria da população europeia sem conhecimento nota-se a importância dos Menestréis na cultura medieval, especialmente na preservação dos contos da época e no entretenimento dos intelectuais e o publico em geral. As músicas eram cantadas e acompanhadas de instrumentos com o estilo peculiar de cada região.

A escolha da figura de um menestrel no poema demonstra a conexão que o Tolkien havia feito em relação a história de Earendel se passar em nosso mundo, especificamente em um período medieval, tal como estava cheio de pensamentos sobre as lendas medievais de São Brandão e Orendel, e suas relações com as palavras de Cynewulf.

Os Menestréis em um manuscrito medieval

O conteúdo do poema ‘O Clamor do Menestrel’

Como parte do conjunto de poemas que tratam sobre o personagem Earendel, O Clamor do Menestrel acrescenta mais informações sobre o desenvolvimento do legendarium. Nele o autor ainda procura entender o significado da palavra e qual o sentido dela para se adequar a uma história.Tolkien começou a ter suas primeiras ideias de como seria a viagem marítima e é como se ele próprio estivesse pedindo ao menestrel que cantasse músicas sobre esse então desconhecido herói de outros tempos.

Então, os primeiros versos são um clamor, um pedido para que o menestrel cante mais sobre os acontecimentos em torno do herói mitológico Earendel “Cante-nos ainda mais de Eärendel, o viajante” (Sing us yet more of Eärendil the wandering). São apresentadas características de ele possuir um navio com remos brancos, cuja estrutura é mais engenhosa que as feitas por humanos.

Em seguida, o requerente informa um elemento do que quer ouvir, que é um conto sobre um “imortal anseio pelo mar” (immortal sea-yearning), e que “Outrora os Eldar fizeram antes da mudança da luz” (The Eldar once made ere the change of the light). Como visto o termo “Eldar” foi acrescentado posteriormente para indicar a pluralidade dos elfos, mas no original Tolkien se referia apenas a Fadas. Então, o conto que se pede ao menestrel é relacionado à imortalidade, ao mar e de uma época que não havia ocorrido a mudança da luz.

Atribui-se aos elfos a autoria desse conto de Earendel. Isso teria implicações no legendarium até o final da vida do Tolkien. Pois o autor utilizou o estilo de escrita de “um livro dentro do livro”, onde os contos das primeiras eras foram registrados pelos elfos e humanos, e a guerra do anel pelos hobbits.

Com isso o requerente descreve um pouco das viagens de Earendel, ressaltando que ele passou pelo oceano em diferentes climas e encontrou ilhas estranhas e esquecidas. Nota-se um verso diferenciado , quando se descreve o navio de Earendel como sendo pássaro branco em meio ao mar “Um petrel, um pássaro do mar, uma gema de asas brancas” (A petrel, a sea-bird, a white-wingéd gem). Não se pode afirmar que essa “gema de asas brancas” seja uma origem das pedras preciosas de O Silmarillion, mas traz ideia de ser algo luminoso, estando dentro da ideia de luz relacionada ao nome Earendel. O navio posteriormente ganhou o nome próprio de Vingelot ou Vingilótë.

A segunda parte do poema é a fala do Menestrel propriamente. Ele responde ao pedido dizendo que a música está quebrada e suas palavras estão quase esquecidas. É como se ele mostrasse que essas histórias são de tempos tão antigos que não foram preservadas devidamente seus relatos. O tempo passou e as coisas mudaram muito, pois a luz do sol ficou fraca e a lua envelheceu. Ou seja, a história de Earendel é de uma época muito antiga em que tudo ainda parecia novo no mundo, até mesmo os astros. E então surge o verso Os navios élficos estão naufragados ou cobertos de algas e podres (The Elven ships foundered or weed-swathed and rotten). Como já ressaltado, inicialmente Tolkien usou a palavra “Fadas”, mas que foi alterado depois para “Elfos”, de todo modo essa foi a primeira referência ao que conhecemos como os elfos de Tolkien em sua forma inicial.

O Menestrel demonstra um certo saudosismo em relação as histórias do passado. Algo que é constante nas histórias de Tolkien. A ideia de um passado que foi glorioso e cheio de coisas interessantes em relação a um presente que perdeu aquele encanto. Isso está inclusive presente em O Senhor dos Anéis, onde as coisas parecem estarem mudando e o tempo dos elfos está no fim na Terra-média. É nesse sentido que ele diz “O fogo e o encantamento dos corações se esfriaram” (The fire and the wonder of heart is acold). O próprio Menestrel questiona se é possível alguém narrar aqueles grandes feitos de outros tempos com a mesma qualidade, riqueza e melodias.

Em seguida, o Menestrel elogia o barco de Earendel, ressaltando sua beleza e seu brilho natural decorrente da madeira branca e como se assemelhava a um grande cisne passando no mar. Sendo a segunda parte do mesmo poema que trata sobre o navio de Earendel, pode-se imaginar que o poema tem como conteúdo principal descrever o barco do viajante e imaginar como seria suas aventuras, mas ainda não se revela qual seria essa aventura marítima.

Na última parte, o Menestrel finalmente informa que vai atender ao pedido de cantar a lenda de Earendel. Mas ele deixa claro que ele apenas fará o possível com pedaços que se lembra.

A canção que posso cantar são lembranças esvanecidas
Que no sono nasceram as douradas ilusões,
Um conto sussurrado pelas brasas enfraquecidas
De antigas coisas distantes que poucos guardam nos corações.[6]

Nesses últimos versos Tolkien deixa claro que as histórias são muito antigas, mas que poucas pessoas guardam os fragmentos do que aconteceu com Earendel. É como se o passado fosse tão distante que são apenas pálidas referencias a algo muito maior. Essa ideia permanece ainda na mentalidade de Tolkien até mesmo quando começa a escrever o Livro do Contos Perdidos (The Book of Lost Tales), onde o personagem marinheiro encontra os elfos e esses narram as histórias antigas que acabariam se tornando o que se conhece como O Silmarillion.

Breve análise comparativa com Homero e Camões

O poema de Tolkien tem aproximadamente 276 palavras, dispostas em 36 versos e duas estrofes. O estilo de rima é simplificado na variação cruzada ABAB. Seu estilo pode ser comparado a outros poemas com estilo épico. É interessante, sobretudo aos lusófonos, estabelecer um paralelo entre o poema Tolkieniano e Os Lusíadas de Luis de Camões. Ao que tudo indica Tolkien não teve contato com as obras em língua portuguesa naquela época e por isso o comparativo exposto é meramente complementar e não significa uma tentativa de mostrar uma inspiração de Tolkien em Camões.

Assim, temos que primeiramente ambas tratam de histórias de navegantes “por mares nunca de antes navegados”. Em seguida existe uma relação na forma de rimas ABABABCC em Os Lusíadas que pode auxiliar no entendimento sobre esse tipo de escrita com a língua portuguesa, como pode ser observado na estrofe 19 do Canto I:

Já no largo Oceano navegavam,
As inquietas ondas apartando;
Os ventos brandamente respiravam,
Das naus as velas côncavas inchando;
Da branca escuma os mares se mostravam
Cobertos, onde as proas vão cortando
As marítimas águas consagradas,
Que do gado de Proteu são cortadas

Em relação a Homero, há uma similaridade no ato de começar o poema com alguma invocação de música a um terceiro. No poema de Tolkien é feito o pedido ao Menestrel que “Canta-nos ainda mais de Eärendel, o viajante”, enquanto que em Homero é feita uma invocação às musas divinas para que cantem ou inspirem o autor, na Iliada “Canta-me, ó deusa, do Peleio Aquiles” e na Odisséia “Canta,ó Musa, o varão que astucioso”. Nesses primeiros versos é feita uma breve introdução do conteúdo do Canto, o que se assemelha a forma como Tolkien escreveu seu poema. Em Lusíadas esse tipo de invocação divina acontece nas estrofes 4 e 5 do Canto I, em que Camões pede inspiração para escrever às ninfas do Tejo.

NOTAS:

[1] A palavra inglesa “Bidding” é o presente particípio de “Bid”,  podendo ter vários significados na língua Portuguesa, transmitindo o sentido de “clamar, pedir, demandar, protestar, queixar, rogar, suplicar, vociferar, invocar, solicitar, requerer, chamar, comandar, reivindicar, ordenar,”. Nessa tradução a palavra escolhida foi “clamor”. Quanto a “Minstrel” é uma palavra que tem sua etimologia relacionada a “menestrel” no Médio Inglês, que por suas vez tem origem no Latim “Ministeralis”. Sendo assim o resultado da tradução para o português é: “O Clamor do Menestrel”. Poderia também ser traduzido como “O Clamor ao Menestrel”, uma vez que o poema inicia com o pedido de uma pessoa para que o Menestrel narre os feitos de Eärendel. Nas edições publicadas do poema em Espanhol o título é “La llamada del menestral” e em Francês “L’Ordonnance du ménestrel”
[2] “there is no other evidence for its date”.(p.269).
[3] The poem was then  much longer than it became, but the workings are exceedingly rough; they have no title. To the earliest finished text a title was added hastily later: this apparently reads ‘The Minstrel renounces the song’. The title then became ‘The Lay of Earendel’, changed in the latest text to ‘The Bidding of the Minstrel, from the Lay of Earendel’. There are four versions following the original rough draft, but the changes made in them were slight. (p.270).
[4] “Eldar in line 6 and Elven in line 23 are emendations, made on the latest text, of ‘fairies’, ‘fairy’”. (p.270).
[5] only that originally the minstrel seems to have responded to the ‘bidding’ much earlier — at line 5, which read ‘Then harken — a tale of immortal sea-yearning. (p.270).
[6] The song I can sing is but shreds one remembers /Of golden imaginings fashioned in sleep/A whispered tale told by the withering embers /Of old things far off that but few hearts keep.

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