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A importância da descoberta de um mapa da Terra-média com anotações de Tolkien

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Tolkien with map

Por: Sérgio Ramos.

Foi divulgada ontem (23 de outubro de 2015) pelo portal do The Guardian a descoberta de um mapa da Terra-média desenhado por J. R. R. Tolkien com um conjunto de anotações reveladoras feitas pelo escritor. A notícia ganhou o mundo e foi replicada em diversos países, demonstrando assim o furor que qualquer coisa “inédita” que apareça de Tolkien recebe uma atenção absurda!

Mas que importância teria uma simples descoberta de um mapa tão conhecido dos fãs de fantasia? É possível que a pessoa que esteja lendo agora este artigo saiba de cor onde ficam localizados lugares do mundo mítico revelado por Tolkien, como Mordor ou a Floresta das Trevas, ou mesmo alterações de relevo, como as Montanhas Sombrias. Então que novidades poderiam ser reveladas?

Inicialmente, deve-se contextualizar tal mapa (onde Tolkien fez anotações com caneta verde).

Mapa encontrado nos materiais de Pauline Baynes (clique para ampliar). Foto: Blackwell’s Rare Books.

Mapa encontrado nos materiais de Pauline Baynes (clique para ampliar). Foto: Blackwell’s Rare Books.

Ele foi encontrado dentro de uma edição de “O Senhor dos Anéis” que havia pertencido à ilustradora Pauline Baynes, a qual ficou famosa por retratar a própria Terra-média, seus personagens e lugares, bem como as Crônicas de Nárnia, do colega Inkling de Tolkien, C. S. Lewis. Foi uma das ilustradoras preferidas do Professor T.

Além de anotações do Tolkien, há algumas da própria Baynes. Ocorre que eles estavam estudando as peculiaridades geográficas da Terra-média para que Pauline pudesse desenhar um pôster com sua versão do mapa a ser publicado pela editora Allen & Unwin em 1970. Mas, para isso, ela deveria bem representar o mundo criado pelo autor.

O resultado foi um mapa belíssimo, que podemos ver na imagem abaixo:

Mapa da Terra-média, por Pauline Baynes (clique para ampliar).

Mapa da Terra-média, por Pauline Baynes (clique para ampliar).

No entanto, Tolkien – detalhista e rigoroso como era – ainda encontrou erros (veja que o mapa acima retrata, na parte superior, a Comitiva do Anel e, na parte inferior, alguns orcs, Gollum, os Nazgûl e Laracna). Por exemplo, a forma como alguns personagens da Sociedade do Anel ou mesmo Gollum foram desenhados não ficaram devidamente acurados como o autor os havia imaginado. Este pode ser tema de um artigo futuro (já que é interessante ver como Tolkien descreveu seus personagens fisicamente para Pauline), mas podemos citar como ele enxergava Gollum (os papéis com esse material estão arquivados na Bodlein Library, em Oxford):

Gollum era, de acordo com Gandalf, do povo dos hobbits ribeirinhos – e, portanto, era um membro originário de uma pequena variedade da raça humana, embora ele tenha ficado deformado durante sua longa moradia no lago escuro. [Ele tinha longas mãos e seus pés] são descritos como palmados, como os de um cisne, mas tinham dedos capazes de pegar. Ele era muito magro – no SdA emagrecido… Para seu tamanho, ele tinha uma cabeça grande e um pescoço longo e fino, olhos muito grandes (protuberantes), e cabelo fino e liso… Ele é muitas vezes descrito como escuro ou negro. Em sua primeira menção, ele é ´escuro como a escuridão´: isso com certeza quer dizer apenas que ele não poderia ser visto por olhos comuns na caverna escura – exceto por seus olhos grandes e luminosos; similar à ´forma escura´ à noite. Mas isso não se aplica à ´forma escura (rastejante)´, como ele foi visto à luz da lua.
Gollum nunca esteve despido. Ele tinha um bolso onde guardava o Anel… sua pele era branca, sem dúvidas empalidecida pela longa moradia na escuridão, e posteriormente devido à fome. Ele permanecia um ser humano, não um animal ou mero espantalho, mesmo que com a mente e corpo deformados: um objeto de nojo, mas também de pena – para os que possuíam uma visão profunda, como Frodo teria. Não há razão para se indagar como ele possuía roupas ou as conseguia: qualquer consideração acerca do conto mostrará que ele teve diversas oportunidades, seja por roubo, ou por caridade (como dos elfos da floresta), durante sua vida.
(Tolkien Papers, Bodlein Library, Oxford)

A descrição acima foi enviada por Tolkien a Pauline ao ver sua representação de Gollum no mapa que ela havia desenhado para o pôster.

Apesar de tudo, Baynes era uma das desenhistas preferidas de Tolkien, como podemos observar na carta abaixo (escrita por ocasião da contratação de Pauline para ilustrar o livro “Mestre Gil de Ham”):

As ilustrações da Srta. Baynes devem ter chegado a Merton no sábado, mas, devido a várias coisas, não as vi até ontem. Escrevo simplesmente para dizer que estou satisfeito com elas além até mesmo das expectativas criadas pelos primeiros exemplares. Elas são mais do que ilustrações, elas são um tema colateral. Mostrei-as aos meus amigos, cujo comentário educado foi de que elas reduziram meu texto a uma explicação sobre os desenhos.

(J. R. R. Tolkien – Carta para Allen & Unwin, 16 de março de 1949)

Em outra carta, Tolkien esperava convencer Pauline Baynes a ilustrar seu livro “As Aventuras de Tom Bombadil”, ocasião em que ele fala:

E pensei na senhora, pois a senhora parece capaz de produzir gravuras maravilhosas com um toque de “fantasia”, mas primeiramente visões brilhantes e claras de coisas que realmente se possa esperar ver.

(J. R. R. Tolkien – Carta para Pauline Gasch [Pauline Baynes], 06 de dezembro de 1961)

Não foi à toa que Tolkien se debruçou tão detalhadamente sobre este mapa descoberto na cópia de “O Senhor dos Anéis” de Pauline Baynes, pois ele queria que, mais uma vez, ela representasse a Terra-média com a mesma sintonia que ele já havia sentido antes entre os escritos do Livro Vermelho e as gravuras da talentosa desenhista.

Como autor, fico honrado em saber que inspirei um compositor. Há muito ansiava por fazê-lo, e também esperava que talvez eu pudesse achar o resultado inteligível para mim, ou sentir que era semelhante a minha própria inspiração – tanto quanto o são, digamos, algumas (mas não todas) das ilustrações de Pauline Baynes…

(J. R. R. Tolkien – Carta para Carey Blyton, 16 de agosto de 1964)

Tolkien sentia que Pauline conseguia, quase sempre, reproduzir em desenho aquilo que ele expressava em palavras.

Agora que o mapa encontrado está contextualizado, ou seja, ele fazia parte de um guia para a ilustradora preferida de Tolkien desenhar sua própria versão cartográfica da Terra-média com a máxima acuidade possível, podemos então começar a ver sua importância (além daquela até aqui demonstrada como historicidade de uma relação profissional entre Tolkien e Baynes): numa das anotações que acompanham o mapa, o autor ressalta que, quanto a Vila dos Hobbits, assume-se que esteja localizada aproximadamente na latitude de Oxford.

Os cadernos de anotações contendo novas informações (clique para ampliar). Foto: Blackwell’s Rare Books.

Os cadernos de anotações contendo novas informações (clique para ampliar). Foto: Blackwell’s Rare Books.

Como sabemos, Tolkien viveu praticamente a vida toda em Oxford, local onde constituiu família e fez sua carreira acadêmica e literária. O fato de ele ter dito que a Vila dos Hobbits corresponderia a Oxford demonstra que, no fundo, seu coração ainda possuía resquícios do desejo antigo de construir uma mitologia própria da Inglaterra. Essa ideia começou a ser desenvolvida com seu “The Book of Lost Tales” (O Livro dos Contos Perdidos), publicado nos volumes I e II do “The History of Middle-earth” (ainda sem tradução para o português), porém tendo abandonado tais contos e a intenção de criar uma mitologia inglesa. Segundo ele:

Não ria! Mas, certa vez (minha crista há muito foi baixada), eu tinha em mente criar um corpo de lendas mais ou menos associadas, que abrangesse desde o amplo e cosmogônico até o nível do conto de fadas romântico – o maior apoiado no menor em contato com a terra, o menor sorvendo esplendor do vasto pano de fundo -, que eu poderia dedicar simplesmente à Inglaterra, ao meu país. Deveria possuir o tom e a qualidade que eu desejava, um tanto sereno e claro, com a fragrância de nosso “ar” (o clima e o solo do noroeste, tendo em vista a Grã-Bretanha e as partes de cá da Europa: não a Itália ou o Egeu, muito menos o Oriente) e, embora possuísse (caso eu pudesse alcançá-la) a clara beleza elusiva que alguns chamaram de céltica (embora ela raramente seja encontrada em antigos materiais célticos genuínos), ele deveria ser “elevado”, purgado do grosseiro e adequado à mente mais adulta de uma terra já há muito saturada de poesia. Desenvolveria alguns dos grandes contos na sua plenitude e deixaria muitos apenas no projeto e esboçados. Os ciclos deveriam ligar-se a um todo majestoso e ainda assim deixar espaço para outras mentes e mãos, lidando com a tinta, música e drama. Absurdo.

E claro que uma proposta pretensiosa como essa não se desenvolveu de uma só vez. As próprias histórias eram o ponto principal. Elas surgiam em minha mente como coisas “determinadas” e, conforme vinham, separadamente, assim também as ligações cresciam. Um trabalho cativante, embora continuamente interrompido (especialmente porque, mesmo à parte das necessidades da vida, a mente esvoaçava para o outro pólo e esgotava-se na linguística); porém, sempre tive a sensação de registrar o que já estava “lá” em algum lugar, e não de “inventar”.

(J. R. R. Tolkien – Carta para Milton Waldman)

Apesar de ter desistido da ideia de criar um mito inglês, o só fato de ele ainda pensar na Vila dos Hobbits como Oxford revela que, em seu íntimo, ele ainda refletia sobre isso. E não para por aí. Quem leu “O Senhor dos Anéis” lembra que Tom Bombadil vivia nas imediações da Floresta Velha, no leste do Condado. Então, as peças vão se encaixando, pois ele mesmo revelou o que seria e onde moraria Tom Bombadil numa correspondência:

Tom Bombadil, o espírito da (minguante) zona rural de Oxford e Berkshire.

(J. R. R. Tolkien – Carta para Stanley Unwin, 16 de dezembro de 1937)

Ou seja, se a Vila dos Hobbits é Oxford, a área nas bordas da Floresta Velha onde mora Tom Bombadil seria perfeitamente sua zona rural, do jeito que Tolkien fez o paralelo entre a Terra-média e a região real.

Parte superior esquerda do mapa (clique para ampliar). Foto: Blackwell’s Rare Books.

Parte superior esquerda do mapa (clique para ampliar). Foto: Blackwell’s Rare Books.

Além disso, as anotações do mapa revelam que a cidade italiana de Ravena é a inspiração para a capital do Reino dos Dúnedain do Sul (Gondor): Minas Tirith. Ravena foi a terceira capital do Império Romano do Ocidente, época em que ostentou influência arquitetônica bizantina, abrigando artistas de renome, sábios e eruditos, rivalizando em prestígio com Roma.

Ravena, Itália.

Ravena, Itália.

E esta não foi a primeira vez que vemos referência à Itália como correspondendo a Gondor. Certa vez, escreveu Tolkien:

Caro Sr. Jeffery,

Muito obrigado por sua carta… Ela chegou enquanto eu estava fora, em Gondor (sc. Veneza), como uma mudança do Reino do Norte, ou eu a teria respondido antes.

(J. R. R. Tolkien – Carta para Richard Jeffery, 07 de setembro de 1955)

Outras cidades são utilizadas como referenciais: Belgrado, Chipre e Jerusalém. Tolkien anotou:

Minas Tirith fica, aproximadamente, na latitude de Ravena (que fica a 900 milhas a leste do Condado ou perto de Belgrado). A parte inferior do mapa (1450 milhas) corresponde aproximadamente à latitude de Jerusalém. Umbar, a cidade dos corsários – aproximadamente à de Chipre.

Parte inferior direita do mapa (clique para ampliar). Foto: Blackwell’s Rare Books.

Parte inferior direita do mapa (clique para ampliar). Foto: Blackwell’s Rare Books.

O mais curioso é que se pode confirmar, de fato, que os acontecimentos de “O Senhor dos Anéis”, caso fossem transpostos para a configuração geográfica de hoje, realmente se passariam na Europa, indo desde a Inglaterra até a Itália e zonas adjacentes, o que justifica grandemente as escolhas de povos, culturas e características presentes no livro.

Tal constatação, em verdade, já havia sido revelada por Tolkien numa correspondência de 1967:

A ação da história acontece no noroeste da “Terra-média”, equivalente em latitude às regiões costeiras da Europa e às costas setentrionais do Mediterrâneo. Mas essa não é uma área puramente “nórdica” em qualquer sentido. Se a Vila dos Hobbits e Valfenda forem consideradas (como pretendido) como estando por volta da latitude de Oxford, então Minas Tirith, 600 milhas ao sul, está por volta da latitude de Florença. As Fozes do Anduin e a antiga cidade de Pelargir estão por volta da latitude da antiga Tróia.

(J. R. R. Tolkien – Carta para Charlotte e Denis Plimmer, 08 de fevereiro de 1967)

Veja que, não necessariamente, há contradição quando Tolkien coloca nas anotações que Minas Tirith é Ravena e, numa correspondência, Florença. Ambas estão separadas por uma distância de cerca de 170 quilômetros apenas.

Parte inferior esquerda do mapa (clique para ampliar). Foto: Blackwell’s Rare Books.

Parte inferior esquerda do mapa (clique para ampliar). Foto: Blackwell’s Rare Books.

Feito este apanhado geral, é forçoso perceber que, mesmo após 42 anos de seu falecimento, ainda seja possível encontrar material inédito ao grande público e, o mais incrível, que ainda revele curiosidades que sirvam de objeto de estudo para tolkienistas de todo o mundo. Papéis como estes agora revelados demonstram aspectos biográficos do autor e também do processo de composição de sua obra, bem como servem de fonte interpretativa de suas histórias.

Mais uma vez fica provado que o estudo de Tolkien e sua Terra-média é para uma vida inteira. Como eu disse em outra oportunidade, “a cada releitura que se faz dos livros, novas nuances e detalhes são revelados. A possibilidade de descoberta é infinita, pois surgem revelações a cada novo retorno àquelas páginas, e isso mantém a Terra-média sempre viva e em constante processo de evolução, pois aquele que se debruça sobre a Obra está sempre aprendendo mais e vendo nascer diante de si novos desdobramentos antes não percebidos.” – além disso, somos brindados com pérolas que vez ou outra surgem de proprietários particulares, como este mapa com anotações que agora vai a leilão ou cartas que saem da obscuridade (como esta AQUI).

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