by Eduardo Stark
Antes de ler esse artigo é interessante também ler o texto que tratamos sobre o Homem da Lua como figura folclórica AQUI.
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Existem diversas criaturas que Tolkien aproveitou as lendas existentes e incluiu em seu legendarium. Em algumas dessas oportunidades primeiro ele escreveu o texto sem nenhuma pretensão de incluir em seu mundo imaginário e posteriormente acabou revisando e incluindo como parte dele. Foi justamente o que ocorre com o personagem o Homem da Lua.
Tolkien escreveu sobre o Homem da Lua em diversos momentos de sua vida. Desde 1915 até a década de 1960 existem textos em prosa ou verso sobre o personagem, demonstrando que o autor tinha uma apreciação e interesse pelo personagem. As principais aparições ou menções (incluído poemas revisados) estão listadas abaixo, com o título original em inglês:
01 – Por que o Homem da Lua desceu cedo demais “Why the Man in the Moon came down too soon”[1]
02 – O Homem da Lua desceu cedo demais “The Man in the Moon came down too soon” (versão revisada do nº 1)
03 – O gato e o violino: uma canção de ninar desconhecida e seu escandaloso segredo descoberto “The Cat and the Fiddle: A Nursery Rhyme Undone and its Scandalous Secret Unlocked”
04 – O Homem da Lua se demorou demais “The Man in the Moon Stayed Up Too Late” [2] (versão revisada do nº 3)
05 –“Uolë and Erinti” (não escrito, apenas uma intenção mencionada)
06 – O Conto do Sol e da Lua “The Tale of the Sun and Moon”
07 – Cartas do Papai Noel “Father Christmas Letter”
08 –“Roverandom”
Existe uma série de alterações de ideias sobre o Homem da Lua que foram sendo feitas ao longo dos anos. Especialmente na sua inclusão ou não dentro do legendarium. A seguir é feita uma análise desse desenvolvimento da história e como ela se aplica no universo mitológico de Tolkien.
Histórico dos escritos sobre o Homem da Lua
Ainda é difícil precisar quando ocorreu o primeiro contato de Tolkien com a lenda do Homem da Lua. Mas bem provável que tenha acontecido em sua infância. Seja com algum relato de sua mãe, ou o Padre Francis Morgan, ou mesmo em sua escola. Até porque a lenda do homem da lua era bem popular naquela época, decorrência da grande quantidade de publicações sobre o tema ao longo do século XIX. O que se sabe é que os primeiros escritos de Tolkien sobre o Homem da Lua ocorreram em sua juventude.
Em 10 ou 11 de Março de 1915, Tolkien era ainda um jovem estudante de Oxford, com preocupações em relação a sua conclusão do curso universitário e com sua iminente partida para o serviço na primeira guerra mundial. Nessa época pensava em escrever poemas que tivesse histórias mitológicas e começou a desenvolver sua primeira língua relacionada ao seu legendarium. Foi nesses dias que ele escreveu um poema chamado “Why the Man in the Moon Came Down Too Soon (An East Anglian Phantasy)” (Por que o Homem da Lua desceu tão cedo – Uma fantasia anglicana do leste), que depois ele prefixou “A Faerie”, também com um título em Inglês Antigo “Se Móncyning” (O Rei-Lua).
Poucos dias depois de ter escrito o poema, Tolkien enviou uma versão digitada para seu amigo G.B. Smith que comentou de forma positiva sobre o poema. Logo depois Smith mostrou os versos para seu amigo poeta de Oxford o H.T. Wade-Gery, que achou o poema muito bom. A crítica também foi positiva por parte de Christopher Wiseman, também amigo pessoal de Tolkien.
Em Maio de 1915, Tolkien fez uma ilustração do Homem da Lua, junto com quatro versos do poema, e incluiu no chamado “The Book of Ishness”. Essa ilustração foi publicada no livro J.R.R. Tolkien: Artist and Illustrator (1995), de Christina Scull e Wayne G. Hammond.
No final de 1916 e início de 1917, Tolkien começou a escrever o “Livro dos Contos Perdidos”. Uma série de escritos que formaria a base para seu legendarium, em especial o Silmarillion. Ele escreveu o “Conto do Sol e da Lua”, em que relata a criação desses astros dentro de sua mitologia. Nessa oportunidade, o Homem da Lua é citado como se fosse um elfo.
Entre 1919 e 1920, Tolkien escreve o poema “Nursery Rhymes Undone”, que passou a ser chamado de “The Cat and the Fiddle”, que depois de uma série de revisões passou a ter o título “The Man in the Moon Stayed Up Too Late”.
Em junho de 1923 o poema “Why the Man in the Moon Came Down Too Soon” foi revisado e publicado no A Northern Venture: Verses by Members of the Leeds University English School Association. E no mesmo ano, em no final de outubro e início de novembro, foi publicado o poema “The Cat and the Fiddle: A Nursery Rhyme Undone and Its Scandalous Secret Unlocked” no Yorkshire Poetry.
Em 20 de dezembro de 1926 Tolkien escreve uma Carta do Papai Noel para seus filhos em que aparece o Homem da Lua, e o mesmo ocorre na carta do ano seguinte. A aparição é breve, porém demonstra mais uma vez o entusiasmo do autor em relação ao personagem. No ano seguinte novamente o personagem aparece, porém com uma maior participação.
No natal de 1927 Tolkien começa a escrever seu primeiro manuscrito de Roverandom durante as férias. Nesse pequeno livro o Homem da Lua tem papel relevante ao encontrar o protagonista e dar o nome que se torna o título do livro.
Ao escrever O Senhor dos Anéis, foi incluído o poema sobre o Homem da Lua no Livro I, capítulo 9, em que o Frodo canta no Pônei Saltitante uma música feita por Bilbo Bolseiro.
No inicio da década de 60, Tolkien revisa seus poemas e incluí no livro “As Aventuras de Tom Bombadil”, que é publicado em 1962 pela editora George Allen & Unwin.
Como parte de uma série de gravações de trechos e poemas de seus livros, Tolkien gravou o poema ‘O Homem da Lua desceu Cedo Demais’ em 1967 para o álbum Poems and Songs of Middle Earth.
Com o falecimento de Tolkien em 1973, seu filho Christopher editou o livro O Silmarillion, e publicou em 1977, contendo as principais lendas da mitologia. Nela há o relato sobre a criação da lua e do Sol, porém, por razões editoriais a menção ao Homem da Lua foi excluída.
Em 2014 foi publicado o livro “The Adventures of Tom Bombadil and other verses from The Red Book” com edição de Christina Scull e Wayne G. Hammond, em que foram adicionadas mais informações e comentários sobre os poemas relacionados ao Homem da Lua.

Livro “As Aventuras de Tom Bombadil”
O Homem da Lua no Livro dos Contos Perdidos
O Livro dos Contos Perdidos (The Book of Lost Tales) começou a ser escrito por Tolkien no final de 1916 e contém diversos textos desde a criação de seu mundo até o final das histórias. Esses foram os primeiros textos que deram origem ao conhecido Silmarillion. Existe dentro desses contos uma relação do personagem o Homem da Lua com a criação do Sol e da Lua.
No Conto do Sol e da Lua, o Homem da Lua não é propriamente uma figura humana. Ele é descrito como sendo um elfo velho e que vive na lua, conforme consta no manuscrito:
um Elfo idoso com cachos grisalhos pisou na Lua sem perceber e se escondeu na Rosa, e lá habita desde então e protege essa flor, e ele construiu na Lua uma pequena torre branca, onde muitas vezes sobe e vê os céus, ou o mundo abaixo. E esse é Uolë Kúvion que nunca dorme. Alguns, de fato, o chamaram de o Homem da Lua, mas Ilinsor é quem caça as estrelas. (Book of Lost Tales part one, p.215).[3]
Ao comentar sobre a rápida aparição do Homem da Lua, Christopher Tolkien demonstra a dificuldade de encaixar o personagem nas histórias de forma coerente. Além disso, nota que existia intenção de Tolkien em desenvolver escritos sobre o personagem, porém, acabou por não escrever:
O velho Elfo Uole Kuvion (a quem “alguns, de fato, o chamaram de o Homem na Lua”) parece ter se desviado de outra concepção. Sua presença dá dificuldade em qualquer caso, já que acabamos de dizer (p.215) que Silmo não podia navegar na Nave da Lua, porque não era dos filhos do ar e não podia “purificar seu ser de sua forma terrestre” – Um título isolado ‘Uolë e Erinti’ no pequeno livro de bolso usado entre as coisas para sugestões de histórias a serem contadas (ver pág. 191) sem dúvida implica que um conto estava se preparando sobre o assunto de Uolë; Cf. O Conto de Qorinómi sobre Urwendi e o irmão Fionwë de Erinti (p.224). Não são encontrados vestígios desses contos e eles provavelmente nunca foram escritos. (Book of Lost Tales part one, p.227)[4]
A noção dos Elfos de Tolkien se alterou com o tempo. Nessa época, o Elfo aparentar velhice não parece ser algo incomum, contudo, ao desenvolver as histórias demonstrou-se que são raros aqueles que apresentam algum sinal de velhice e cabelos brancos. Ou mesmo poderia implicar que o Elfo é tão antigo que isso acabou repercutindo em sua aparência, algo que parece ter acontecido com o elfo Círdan, por exemplo.
Em outra nota em um pequeno caderno Tolkien escreve “Uolë Mikúmi (o nome antigo de Uolë Kúvion, p. 221) ‘Rei da Lua’. Mais uma vez em uma terceira referência o poema ‘O Homem da Lua’ que deve ser cantado por Eriol[5]. Christopher Tolkien lembra que existe o poema escrito em 1915 sobre o Homem da Lua, mas que se tivesse alguma relação com a música de Eriol teria seguido por Mar Vanwa Tyalieva, e teria mudado as referencias dos lugares na Inglaterra que não existiam ainda.
O Homem da Lua parece estar conectado com Tilion, uma vez que o Tolkien menciona ambos quando apresenta a raiz “TIL” nas Etimologias do antigo Quenya, escritas entre 1916 e 1920. A nota apresentada é a seguinte:
TIL-: ponto, chifre. Q tilde, ponto, chifre; Cf. Ta-niqe-til (g.sg. tilden); N tild, til chifre. Q Tilion ‘o Cornudo’, o nome do homem na Lua; N Tilion. Q neltil (neltildi), N nelthil triângulo (ver NEL). [Cf. QS §75: nota marginal para Ælfwine ao nome Tilion: ‘hyrned’ (Inglês Antigo, ‘cornudo’). (Ver. Etimologias, Lost Tales, p.293) [6]
Em comentário sobre essa parte, Christopher Tolkien se questiona se Tilion seria o mesmo que o Homem da Lua ou que essa menção implicaria em afirmar que aquele seria uma origem da lenda. Isso implicaria dizer que o Homem da Lua não era mais um elfo idoso, mas sim uma figura divina do legendarium:
É estranho que Tilion esteja aqui “o homem na Lua”: no QS (como em Q, IV. 97) ele era “um jovem caçador da companhia de Oromë”. Isso é a implicação de que, em tempos posteriores, o mito de Tilion se tornou a história do Homem na Lua? (Ver I.202). (Ver. Etimologias, Lost Tales, p.293)[7]
A resposta para o questionamento é imprecisa. Uma vez que Tolkien não afirmou claramente a participação do Homem da Lua. Christina Scull e Wayne G. Hammond acabam concluindo pela resposta positiva. Ao comentar sobre a lenda de Tilion e surgimento da Lua ele afirmam que “evidentemente deram origem as histórias como as contadas nesse poema [o Homem da Lua]” (Lord of the rings companion, p.157).[8]
Há aqui uma real dificuldade em definir o que seria o Homem da Lua e se ele ainda permaneceria no Legendarium. A versão do Silmarillion publicado, incluí no relato sobre a origem da Lua e do Sol, partes do manuscrito dos ‘Anais de Aman’ que é datado por volta de 1950, um material posterior ao narrado no Livro dos Contos Perdidos. O Personagem Tilion ainda permanece na história, porém sem qualquer menção ao Homem da Lua. Conforme Christopher Tolkien anotou:
À medida que a mitologia evoluiu e mudou, a Criação do Sol e da Lua tornou-se o elemento de maior dificuldade. E no Silmarillion publicado este capítulo não parece ser uma peça como o restante da obra, e não poderia ser feito para ser. No final de sua vida, meu pai estava realmente preparado para desmantelar muito do que ele havia construído, na tentativa de resolver o que, sem dúvida, sentiu ser um problema fundamental. (Book of Lost Tales part one, p.228).[9]
Fica evidenciado que Tolkien pretendia distinguir Tilion do Homem da Lua. Talvez uma similaridade com a diferença entre o deus nórdico da Lua e o Homem da Lua das lendas populares. Dessa forma é que o personagem é incluído em O Senhor dos Anéis e no livro As Aventuras de Tom Bombadil. Para evitar qualquer confusão em relação a Tilion e o Homem da Lua, Christopher Tolkien omitiu no Silmarillion publicado alguma relação entre ambos e parece deixar sem resposta essa possível conexão.

Papai Noel de Tolkien
O Homem da Lua nas Cartas do Papai Noel
A primeira aparição do Homem da Lua ocorreu na carta do papai Noel de 20 de dezembro de 1926. O Papai Noel relata que seu Urso-Polar do Norte fez várias atrapalhadas e acabou tirando todas as estrelas do lugar e dividiu a Lua em quatro. Foi assim que o Homem da Lua caiu no quintal do Papai Noel e comeu muitos chocolates de Natal. E ficando satisfeito e se sentindo melhor subiu e voltou para remendar a lua e arrumar as estrelas.
No ano seguinte o Homem da Lua também aparece nas cartas do Papai Noel. A carta de 21 de dezembro de 1927 diz o seguinte:
Outro dia o Homem da Lua veio me visitar – foi há exatamente duas semanas. Nessa época ele vem me visitar com frequência, pois fica muito sozinho na Lua, e fazemos para ele um belo Pudim de Passas (ele adora passar o tempo comendo coisas com passas!). Os dedos dele estavam frios como sempre, e o Urso-Polar do Norte o fez aquecê-los brincando de pescar passas no conhaque em chamas. É claro que ele queimou os dedos, depois os lambeu, e gostou do conhaque; o Urso lhe deu muito mais, e ele dormiu profundamente no sofá. Depois desci até o porão para fazer biscoitos; o Homem da Lua rolou do sofá, o urso malvado o empurrou para baixo e se esqueceu dele completamente! Ele nunca pode ficar uma noite inteira fora da Lua, mas dessa vez ficou”. (Cartas do Papai Noel, p.32)
Vendo o que o Papai Noel escreveu, o Urso Polar comenta na mesma carta, com letras diferenciadas, que “Nunca fui encarregado de cuidar do Homem da Lua. Fui muito gentil com ele, que ficou muito confortável embaixo do sofá.” (Cartas do Papai Noel, p.33).
Dessas passagens sobre o Homem da Lua percebe-se que ele gosta de comer coisas com passas e chocolates de Natal, mas não há nenhum detalhe sobre o personagem que possa ser considerado relevante. Além do fato de que a data do eclipse lunar ocorrido em 8 de dezembro, coincide com o mesmo dia em que o Homem da Lua deixou a lua para visitar o Papai Noel, e os dragões vieram e escureceram a luz.
A ideia do Homem da Lua se queimar reflete a relação com o poema tradicional. No qual ele tomou uma queda e perguntou o caminho para Norwich. E indo pelo sul acabou queimando a boca ao jantar mingau de ervilha.
Dentro da história do Papai Noel, o Homem da Lua é relacionado às lendas e contos infantis e não parece ter alguma conexão direta com o legendarium, embora haja elementos nas Cartas do Papai Noel que parecem evocar essas histórias.
Interessante entender a relação que existe entre a menção do Homem da Lua e o livro Roverandom. Christina Scull e Wayne G. Hammond, no prefácio do livro Roverandom apresentam a ideia de que há uma forte ligação entre as histórias, observando a relação dos eclipses lunares nas duas histórias:
As semelhanças entre essa ficção e o episódio do Grande Dragão Branco em Roverandom são muito importantes para serem meras coincidências. E, a partir delas, pode ser razoável supor que Tolkien tinha Roverandom em mente ao escrever sua carta de “Papai Noel” em dezembro de 1927. Se ele apresentou a noção de dragões-da-lua como causa de eclipses primeiro na carta, ou se para esse fim recorreu a um conceito já existente em Roverandom, é impossível dizer; mas as duas obras devem necessariamente estar relacionadas.
Dessa forma, é razoável supor que os primeiros escritos de Roverandom estavam sendo feitos na mesma época das cartas do Papai Noel de 1926 e 1927. O personagem é, portanto, a mesma figura nas duas histórias.

Ilustração de J.R.R. Tolkien
Aparição do Homem da Lua em Roverandom
Ainda dentro do estilo de manuscritos de histórias infantis para seus filhos, Tolkien escreveu o Roverandom, no final dos anos 20 do século passado. Trata-se das aventuras do cachorrinho Rover, que acaba encontrando o Homem da Lua.
No livro há uma pequena descrição do personagem: “Há pelo menos um cachorro lá, porque o Homem-da-Lua tem um. E, como ele é um velhinho simpático, além de ser o maior de todos os magos, com toda certeza há ossos para o cachorro, e provavelmente para visitas” (Roverandom, p.109).
O fato do Homem da Lua ter uma cachorro parece ter relação com a tradição dos poemas sobre o personagem na literatura inglesa, com uma menção feita por Shakespeare. Além disso, agora o Homem da Lua é um homem já velho e um mago poderoso.
Na época em que Tolkien escreveu o Roverandom não havia ainda a noção dos Istaris, os magos da Terra-média, por isso Christina Scull e Wayne Hammond afirmam que os magos presentes nesse livro Artaxerxes, Psamatos e o Homem-da-Lua “cada um a seu modo é um precursor de Gandalf”.
Ainda, no prefácio de Roverandom, Christina Scull e Wayne Hammond apresenta comparações entre o legendarium e o pequeno livro do cãozinho. Escrevem sobre o Homem da Lua e sua relação com o caminho dos sonhos que levava ao ‘Chalé do brincar perdido’:
Era quase inevitável que Roverandom fosse atraído na direção da mitologia (ou legendariuni) que àquela altura Tolkien já vinha desenvolvendo havia uma década ou mais e que continuava a ser para ele um tema principal. Podem-se fazer algumas comparações entre essas obras. O jardim no lado escuro da lua em Roverandom, por exemplo, é muito semelhante ao “Cottage of Lost Play” [Chalé do brincar perdido] em The Book of Lost Tales [O livro dos contos perdidos], o mais antigo tratamento em prosa dado ao legendarium. No segundo, as crianças “dançavam e brincavam…, colhendo flores ou correndo atrás de abelhas douradas e borboletas com asas bordadas” (Part One [publicada em 1983]), enquanto no jardim-da-lua elas estão “dançando sonolentas, caminhando como em sonho e falando consigo mesmas. Algumas começavam a se mexer como se estivessem despertando de um sono profundo; algumas já estavam correndo bem acordadas e riam: cavavam, colhiam flores, construíam cabanas e casas, perseguiam borboletas, chutavam bolas, subiam em árvores, e todas estavam cantando”. O Homem-da-Lua não quer dizer como as crianças chegam ao seu jardim, mas a certa altura Roverandom olha para a terra e parece ver “longas filas, desbotadas e bastante ralas, de pessoinhas flutuando velozes” pelo caminho da lua; e, como as crianças chegam ao jardim ainda adormecidas, parece certo que Tolkien tinha em mente sua visão já existente do Olóre Malle ou Caminho dos Sonhos, que levava ao “Cottage of Lost Play”: “pontes esguias pousadas no ar cintilando cinzentas como que de brumas sedosas iluminadas por um luar delicado”, um caminho que os olhos de homem algum contemplaram “a não ser nos sonos tranquilos da juventude do seu coração” (The Book of Lost Tales, Part One, p.211). (Roverandom, p. XXIII-XXIV).
Mas importante deixar evidenciado o comentário de Christopher Tolkien que afirmar que a ideia da vinda de crianças mortais para os jardins de Valinor foi abandonada inteiramente e “no desenvolvimento da mitologia não poderia haver lugar para isso” (Book of Lost Tales, parte one, p. 42).
O Homem da Lua no livro Roverandom parece tem um papel importante na história. Ao contrário das outras menções, ele participa ativamente da trama. Ao lidar diretamente com o protagonista e com outros personagens. Contudo, ele não poderia ser definido como um personagem do legendarium nessa forma, mesmo com as similaridades apontadas anteriormente por Christina Scull e Wayne Hammond. Isso por que essa era uma fase experimental, com rascunhos e que Tolkien estava desenvolvendo o legendarium.
O Homem da Lua no Legendarium de J.R.R. Tolkien
Na mitologia de Tolkien a Lua tem sua origem em tempos remotos. Após as duas árvores de Valinor terem sido envenenadas e feridas por Melkor e Ungoliant, antes de ser destruída Telperion gerou sua última flor de prata e Laurelin seu último fruto dourado. A Lua foi criada a partir daquela flor de prata e era guiada por Tilion, o Maia, um dos Ainur.
Por ausência de esclarecimentos em escritos do Tolkien, não é possível saber a real ligação entre o maia Tilion e o Homem da Lua, ou mesmo se ele seria um elfo idoso que decidiu morar naquele satélite natural. Mas existem especulações, como o Christopher Tolkien afirmar existir a possibilidade de conto de Tilion ter de alguma forma originado as lendas do Homem da Lua. E a afirmação categórica de Christina Scull e Wayne Hammond que ‘evidentemente’ aquela história deu origem ao folclore do Homem da Lua.
Porém, como o poema do Homem da Lua deve ser assumido como uma representação de lendas e histórias entre os homens e Hobbits que tinham pouco contato com os “verdadeiros” acontecimentos em Arda, especialmente relativos a Arda.
Os versos sobre o personagem fazem parte da cultura dos homens da Terra-média, como “O Homem da Lua desceu cedo demais” um poema do Condado escrito no Livro Vermelho do Marco Ocidental na Quarta Era, que possivelmente tenha sido derivado de Gondor. Da mesma forma o poema “O Homem da Lua se demorou demais” foi escrito por Bilbo Bolseiro e registrado no Livro Vermelho. Essa informação é percebida no livro As Aventuras de Tom Bombadil que dispõe:
A influência dos eventos transcorridos no final da Terceira Era e o alargamento dos horizontes do Condado através de seus contatos com Valfenda e Gondor podem ser percebidos em outras peças. O número 6 [se referindo ao poema O Homem da Lua desceu cedo demais] embora colocado aqui logo após a rima de Bilbo denominada O Homem da Lua, e o último item, o Número 16, devem ser derivados, em última análise, de Gondor. São evidentemente embasados nas tradições dos Homens que habitavam as zonas costeiras e estavam familiarizados com os rios que corriam para o mar. O Número 6, de fato, menciona Belfalas (a ventosa Baía de Bel) e a Torre Costeira, a Tirith Aear de Dol Amroth.(…) Estas duas composições, portanto, são apenas rearranjos da temática sulista, embora possam ter chegado às mãos de Bilbo via Valfenda.(As Aventuras de Tom Bombadil. p.XI-XII).
A última parte do texto destacado merece uma atenção “embora possam ter chegado às mãos de Bilbo via Valfenda”. Isso pode dar margem a ideia de que o Homem da Lua seria uma lenda antiga derivada das história do maia Tilion, e não apenas algo relacionado aos humanos.
Assim, o Homem da Lua pode ser considerado como um personagem das histórias contadas no Condado e em Gondor. Como se fosse um conto de fadas ou um personagem folclórico. Sua conexão com o maia Tilion não parece ser completamente acertada, muito embora a origem do personagem possa ter sido originária dele.
O poema “O Homem da Lua desceu cedo demais”
O primeiro poema do Tolkien sobre o homem da lua foi renomeado para “O Homem da Lua desceu cedo demais”. Aqui o personagem é descrito como alguém que usava sapatos prateados, uma barba tecida com fios de prata, coroado com pérolas, com um cinto largo e um manto cinzento. Uma descrição que parece lembrar algumas interpretações artísticas do Merlin das lendas arturianas.
O Homem da Lua se sentia isolado e solitário onde estava e teve o desejo de descer na terra e lá conseguir alguns tesouros, escutar lendas e comer coisas gostosas. Ao descer na Terra, ele acaba caindo em um rio e é carregado por pescadores da região. Eles indicam a cidade em que poderia se hospedar, mas lá não encontra o que esperava, pois praticamente todas as pessoas estavam dormindo.
Ele chega até uma casa e é atendido pelo dono, que permite que ele fique e coma algo, mas com a condição de que entregasse sua coroa e o manto. È então revelado que ele chegou cedo demais, um dia antes do Natal, onde ele poderia ganhar presentes e comer guloseimas e escutar histórias que queria.

Homem da lua de Alan Lee
O poema “O Homem da Lua se demorou demais”
No capítulo “No Pônei Saltitante”, em O Senhor dos Anéis: A Sociedade do Anel, Frodo e os hobbits estão na estalagem em Bri, onde ocorre um momento de constrangimento e o portador do anel decide cantar uma música feita por Bilbo para distrair os presentes. Essa música, fornecida na integra no livro, de forma descontraída narra a aventura do Homem da Lua ao descer na terra para beber numa estalagem.
Havia uma estalagem na terra, que ficava ao pé de um morro, que produzia uma cerveja de qualidade. Então o Homem da Lua desceu para tomar essa cerveja. O dono da estalagem tem um gato embriagado que toca violino, um cachorrinho engraçado e uma vaca dançarina. O Homem da Lua bebeu tanto que rolou para debaixo de sua cadeira e lá ficou dormindo e sonhando com mais cerveja. Até que a noite estava acabando. O dono da estalagem percebeu que os cavalos brancos da lua estavam relinchando e que o Homem da lua deveria acordar logo e disse para o Gato:
“Os brancos corcéis da Lua
Relincham e mordem os freios de prata;
Mas o Homem ressona, e nada o resgata,
e logo o Sol sai à rua!”.[10]
Então o Gato tocou sua rabeca de forma estridente para acordar o Homem da Lua. Enquanto o taverneiro o sacudia dizendo “já são mais de três da manhã!”. Mas o Homem da Lua não acorda mesmo com o som do Gato. Então eles decidem empurra-lo para dentro da lua. Eles iam rolando o Homem da Lua e seus cavalos iam o seguindo. E todos dançaram e comemoraram o feito. O Gato tocou o violino e acabou quebrando as cordas de tanto tocar. Até que a Lua rolou por detrás da Colina e o Sol começou a surgir. Ao ver todos se apressarem para ir dormir o Sol ficou surpreso, pois já era dia e deveriam estar acordando e não indo dormir.
A menção aos cavalos traz uma ligação com a mitologia nórdica do deus Máni, uma personificação masculina da lua que atravessa o céu em sua carruagem puxada por cavalos brancos. Da mesma forma a deusa grega Selene (Luna, a Lua) é descrita dirigindo uma carruagem puxada por cavalos brancos.
Não há no poema muitas informações sobre o personagem. Mas podem ser extraídas as informações que o Homem da Lua gosta de beber cerveja e possui cavalos brancos. Além disso, segundo Christina Scull e Wayne Hammond existe obviamente uma relação com a rima infantil “Hey Diddle Diddle”[11]:
Hey diddle diddle,
O gato e o violino,
A vaca saltou sobre a lua,
O cachorrinho riu
Ao ver tal esporte,
E o prato fugiu com a colher[12]
Esse são versos antigos, cuja verdadeira origem não é conhecida, porém alguns afirmam ter sido publicado pela primeira vez em 1765 em londres no livro “Mother Goose’s Melody”. Existe também um poema similar no livro “At the Back of the North Wind” em “The True History of the Cat and the Fiddle” de George MacDonald, que talvez possa ter sido uma influência para Tolkien.
A conexão do legendarium e nosso mundo
A ideia de Tolkien sobre o suas mitologias é que elas não tratavam de um mundo diferente do nosso. Na verdade os acontecimentos seriam um passado mitológico de nosso próprio mundo. Ou seja, a Terra-média não é nada mais do que a nossa Terra, porém há milhares de anos atrás em um tempo em que os elfos e hobbits ainda participavam do mundo livremente e o mal concreto podia ser visto.
Desse modo, existe a possibilidade de se fazer uma ligação cronológica entre as aventuras de Frodo no final da terceira e início da quarta era do Sol e o nosso tempo. Segundo Tolkien o tempo atual poderia ser encaixado na sexta ou sétima era do sol.
Com isso em mente, várias associações de lendas antigas podem ser feitas, como se o personagem tivesse sua origem na época da Terra-média e se manteve ao longo das eras nas tradições e cultura dos povos. É assim que o trecho de O Senhor dos Anéis chama a atenção em se tratando da lenda do Homem da Lua.
Pouco antes de apresentar a integra do poema do Homem da Lua, cantada por Frodo Bolseiro na estalagem em Bri, o narrador Tolkien apresenta comentários sobre a música do Bilbo afirmando o seguinte:
Por um instante, Frodo parou embasbacado.Então, desesperado, começou uma canção ridícula muito apreciada por Bilbo (e da qual na verdade se orgulhava muito, pois ele mesmo tinha feito a letra). Era sobre uma estalagem, e talvez por isso tenha vindo à mente de Frodo exatamente naquele momento. Aqui está a canção completa. Hoje em dia, geralmente apenas algumas palavras dela são lembradas. (O Senhor dos Anéis, A Sociedade do Anel, No Pônei Saltitante).[13]
A frase destacada “Hoje em dia, geralmente apenas algumas palavras dela são lembradas”[14] Demonstra claramente a conexão do poema no mundo de Tolkien e o nosso mundo. O que se passar é que o folclore dos Hobbits e homens de Gondor foi sendo recontado de geração em geração até chegar aos nossos dias, porém, como o tempo se distanciou restaram apenas alguns versos no folclore europeu propriamente. Assim, o que se conhece sobre o Homem da Lua são as poucas lembranças do próprio conto desenvolvido na época da Terra-média.
Isso se torna evidenciado, pelo fato de Tolkien desejar que sua mitologia fosse dedicada a Inglaterra e dessa forma as lendas se relacionariam a essa cultura. Um quadro comparativo pode ser feito entre o mundo primário (nossa realidade) e o mundo secundário (mundo imaginário de Tolkien que se interliga a nossa realidade), tomando como base a ligação entre a mitologia de Tilion e a lenda do homem da Lua, conforme Christina Scull, Wayne Hammond e Christopher Tolkien evidenciam.
Importante ressaltar que no mundo secundário, o fato de a lenda ter suas origens na terceira Era, não impede também que sua origem tenha relações com o período medieval ou mesmo com a mitologia de Máni, já que em se tratando de mitologias existem os arquétipos, elementos comuns nas várias formas de se contar as histórias.
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NOTAS:
[1] A edição Brasileira de Roverandom, pela editora Wmf Martins Fontes, traduziu o título do poema como “Por que o Homem da Lua caiu antes da hora.”.
[2] Na edição Brasileira de As Aventuras de Tom Bombadil, pela editora Martins Fontes em 2008, o tradutor Ronald Kyrmse optou por traduzir o título como “O Homem da Lua foi dormir muito tarde”.
[3] an aged Elf with hoary locks stepped upon the Moon unseen and hid him in the Rose, and there dwells he ever since and tends that flower, and a little white turret has he builded on the Moon where often he climbs and watches the heavens, or the world beneath, and that is Uolë Kúvion who sleepeth never. Some indeed have named him the Man in the Moon, but Ilinsor is it rather who hunts the stars. (Book of Lost Tales, part1, p.215)
[4] The aged Elf Uole Kuvion (whom ‘some indeed have named the Man in the Moon’) seems almost to have strayed in from another conception; his presence gives difficulty in any case, since we have just been told (p. 215) that Silmo could not sail in the Moonship because he was not of the children of the air and could not ‘cleanse his being of its earthward-ness’.-An isolated heading ‘Uolë and Erinti’ in the little pocket-book used among things for suggestions of stories to be told (see p. 191) no doubt implies that a tale was preparing on the subject of Uolë; cf. the Tale of Qorinómi concerning Urwendi and Erinti’s brother Fionwë (p. 243). No traces of these tales are to be found and they were presumably never written. (Book of Lost Tales, part one, p.227).
[5] ‘who says he will sing them a song of a legend touching Uolë Mikúmi as Men have it’ ((Book of Lost Tales, part one, p.227).
[6] TIL- point, horn. Q tilde point, horn; cf. Ta-niqe-til (g.sg. tilden); N tild, till horn. Q Tilion ‘the Horned’, name of the man in the Moon; N Tilion. Q neltil (neltildi), N nelthil triangle (see NEL). [Cf. QS §75: marginal note by Ælfwine to the name Tilion : ‘hyrned’ (Old English, ‘horned’). It is strange that Tilion is here ‘the man in the Moon’: in QS (as in Q, IV. 97) he was ‘a young hunter of the company of Oromë’. Is the implication that in later ages the myth of Tilion became the story of the Man in the Moon? (see I. 202).] (ver. Etymologies, Lost Tales, p.293)
[7] It is strange that Tilion is here ‘the man in the Moon’: in QS (as in Q, IV. 97) he was ‘a young hunter of the company of Oromë’. Is the implication that in later ages the myth of Tilion became the story of the Man in the Moon? (see I. 202).] (ver. Etymologies, Lost Tales, p.293)
[8] “evidently gave rise to stories such as the one told in this poem” (Lord of the rings companion, p.157)
[9] As the mythology evolved and changed, the Making of the Sun and Moon became the element of greatest difficulty; and in the published Silmarillion this chapter does not seem of a piece with much of the rest of the work, and could not be made to be so. Towards the end of his life my father was indeed prepared to dismantle much of what he had built, in the attempt to solve what he undoubtedly felt to be a fundamental problem. (Book of Lost Tales part one, p.228).
[10] No Original: “The White horses of the Moon/They neigh and champ their silver bits/But their master’s been and drowned his wits/and the Sun’ll be rising soon!’. Na tradução de William Lagos: “Os cavalos brancos da Lua/Eles relincham e mordem seus freios de prata/Mas seu amo está aqui e afogou o seu siso/e logo, logo, o Sol vai nascer!…”.
[11] Lord of the rings companion, p.156
[12] Hey diddle diddle/The cat and the fiddle,/The cow jumped over the moon/The little dog laughed/To see such sport/And the dish ran away with the spoon.
[13] For a moment Frodo stood gaping. Then in desperation he began a ridiculous song that Bilbo had been rather fond of (and indeed rather proud of, for he had made up the words himself). It was about an inn; and that is probably why it came into Frodo’s mind just then. Here it is in full. Only a few words of it are now, as a rule, remembered.
[14] Na tradução da editora Europa-américa de o Senhor dos Anéis “embora hoje já só se recordem, geralmente, algumas palavras”. E na tradução da editora Artenova “embora apenas algumas palavras dela sejam lembradas hoje em dia”.
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